Muito além da relação entre ignorância e genialidade, Flores para Algernon é obrigatório
Ninguém discordaria que é uma boa meta tornar-se um ser humano melhor a cada dia, não é? Quase sempre, esse objetivo envolve aquisição de conhecimento e aprimoramento da inteligência. Charlie Gordon também queria tornar-se mais inteligente, mas estava em uma condição mais delicada. Com trinta e dois anos no momento em que o conhecemos em Flores Para Algernon (Flowers For Algernon), Charlie nasceu e viveu com uma deficiência mental severa, mal capaz de manter-se sozinho e com a percepção de uma criança em idade pré-escolar.
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Empregado em uma padaria como um favor ao seu falecido tio, que evitou que ele fosse internado em uma instituição quando era mais jovem, Charlie frequenta uma escola para adultos na mesma situação. Mesmo a crueldade ocasional de seus colegas de trabalho é um alento para o protagonista, rejeitado pela mãe e irmã, que não o veem há anos. Embora seja impossível formular raciocínios complexos e muito difícil reter memórias, ele é ciente de sua condição e entende a rejeição como consequência disso.
Encontrando mais um alívio na atenção da professora Alice Kinnian, a dedicação que demonstra nas aulas é determinante para a virada. Ele acaba indicado para um tratamento revolucionário que visa aumentar sua inteligência a um nível incrível em pouquíssimo tempo. Naquele momento o procedimento já havia mostrado resultados surpreendentes em uma cobaia, o rato Algernon, e Charlie encara o desafio. Sem entender nada ao seu redor, a única ambição é ser mais inteligente para que as pessoas gostem dele.
Evidentemente, Flores Para Algernon não apoia sua narrativa na expectativa de que Charlie seja submetido ao processo, além do sucesso ou fracasso da experiência. Não demora muito para que isso aconteça e acompanhemos a evolução do protagonista em poucos meses e os novos conflitos que se apresentam. O novo Charlie é o gênio dos gênios, percebendo que essa condição também é solitária, mas existem problemas em percorrer uma distância tão longa em tão pouco tempo.
Escrito em 1966 pelo psicólogo Daniel Keyes, o livro desenvolve a sinopse que o autor já havia apresentado em um conto de 1959. Em poucas páginas, são 288 na edição da Aleph*, Keyes conseguiu criar um personagem principal dos mais cativantes, fazendo ainda seu leitor refletir sobre inúmeras questões atemporais. Sem julgamentos, respostas fáceis ou maniqueísmo, família, relacionamentos, inteligência, alienação e maturidade são tópicos brilhantemente dispostos nesta narrativa.
(Confira também nossas últimas resenhas do catálogo da editora, como Poeira Lunar, Justiça Ancilar e Encarcerados)
Uma estrutura narrativa que nos mantém próximos de Charlie
Narrado em primeira pessoa pelo próprio Charlie, Flores Para Algernon é estruturado exclusivamente nos relatórios que o personagem principal prepara como parte da experiência. Sendo assim, começamos lendo escritos com inúmeros erros de grafia e concordância que nos revelam o grau de sua deficiência e os problemas que enfrenta desde sempre. Conforme o tempo passa, é gradual a mudança para um texto escrito corretamente, com a tradução para o português emulando bem essa peculiaridade do original.
Essa opção textual é mais do que acertada para sentirmos Charlie como alguém real. O contato com o leitor é muito mais íntimo neste caso, nos fazendo enxergar o mundo pelos seus olhos em duas fases muito distintas de sua vida. É quase como um amigo desabafando conosco, com a nossa impossibilidade de ajudar um ser ficcional nos impelindo a torcer tanto por ele quando antecipamos algum revés.
Outro fato notável em Flores Para Algernon está na capacidade de criar empatia e identificação através de uma situação fantástica. Aqui, isso foi possível graças à narração em primeira pessoa, permitindo uma reflexão mais profunda sobre o interior de um adulto deficiente mental, conectando seus sentimentos com os nossos. Já em sua nova persona, Charlie não perde o apelo, pois o personagem ainda carrega traços que reforçam sua humanidade. Seja em falhas comuns que encaramos todo dia ou no desespero existencial.
Emoção e reflexão de mãos dadas
Mais de cinquenta anos depois, o livro de Daniel Keyes continua atual. Não é uma obra que buscou os fanáticos pelo apuro técnico de um Arthur C. Clarke, mas entregou aos seus leitores um tratado consistente sobre a condição humana. Trouxe material para muitas horas de discussão envolvendo inúmeras aflições comuns à vida de qualquer um.
Com tanto peso intelectual, Flores Para Algernon ainda merece aplausos pelo conteúdo emocional arrebatador que não destoa de sua proposta, pelo contrário. Sem pieguice ou qualquer apelação, apresentou um protagonista que encanta e faz o leitor pensar na própria vida. Independente da interpretação que cada um tiver ao final do livro, Charlie Gordon continua em nossa lembrança.
Na verdade, seria bem difícil esquecê-lo…