David Cronenberg e sua incursão pelo mundo das Letras em Consumidos
Um cineasta se aventurando na literatura é sempre interessante, desde que já tenha uma obra famosa e reconhecível. Evidentemente, David Cronenberg se enquadra nesta categoria. Hoje com mais de setenta anos, este senhor canadense pode se orgulhar de uma extensa carreira, com mais de quarenta créditos como diretor e um pouco menos como roteirista. O triunfo real desta trajetória não é a quantidade, mas o reconhecimento artístico de alguém que era identificado apenas com vísceras e cabeças explodindo, no início da década de 1980. Mesmo assim, já era um cinema comprometido com uma forma de pensar, algo que fica mais óbvio hoje pelo distanciamento e pela evolução de seus filmes. E assim, chegamos a Consumidos (Consumed).
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Impossível escrever este seu primeiro romance, lançado pela editora Alfaguara em 2014, e não cair no seguinte clichê: Se você curte o cinema de Cronenberg, a chance de gostar do livro é bem maior. Na contra capa, entre os tradicionais comentários positivos, o primeiro – do também cineasta J. J. Abrams – diz tudo em sua primeira frase, afirmando que “É um Cronenberg clássico!”. O que isso significa exatamente?
O ponto de partida desta história de conspiração, paranoia e, principalmente, consumismo, é a viagem simultânea do casal de jornalistas, Nathan e Naomi, cada um envolvido em uma reportagem diferente. Ele se encontra em Budapeste, para cobrir uma intervenção cirúrgica inovadora, utilizando sementes radioativas, no tratamento de câncer de mama. Enquanto isso, ela está em Paris, à procura de detalhes sobre um crime envolvendo um famoso casal sexagenário de filósofos acadêmicos, Aristide e Célestine Arosteguy. O marido está foragido, acusado de matar e comer partes do corpo da esposa. Apenas o pontapé inicial de uma coleção de excentricidades, onde o autor deve ter sentido uma liberdade inédita, sem amarras de produção ou orçamento.
Absolutamente pirados por tecnologia, o casal protagonista tem seus equipamentos fotográficos, notebooks, celulares e softwares descritos, quase que catalogados, pela prosa de Cronenberg. Não é uma preocupação nova ao escritor/cineasta, que cruza essa provável crítica à obsessão tecnológica a um retrato não muito agradável do mundo da medicina. Os familiarizados com a filmografia dele devem lembrar-se de Enraivecida na Fúria do Sexo, de 1977, onde havia um médico cujo sobrenome era Keloid (queloide é o termo para cicatrizes fibrosas e protuberantes), assim como Filhos do Medo, em 79, onde uma sessão revolucionária de psicodrama cria algo fisicamente ameaçador. Apesar da ironia similar, em Consumidos a coisa é mais sutil, sem gerar monstros tão reconhecíveis, o que o torna mais próximo de Gêmeos – Mórbida Semelhança, de 1988, pelo menos neste detalhe.
A estranha jornada de Nathan e Naomi – sempre longe um do outro, exceto por um encontro que gera uma circunstância desagradável – os leva para outros países, cruzando com um médico que batizou uma DST que se acreditava erradicada, um ex-aluno e integrante da vida abertamente promíscua dos Arosteguy, cuja condição clínica deixou seu pênis permanentemente torto, uma garota que come pequenos pedaços da própria pele e – claro – o próprio suposto canibal, Aristide Arosteguy. Todas essas pessoas juntas, em um caldeirão conspiratório que pode envolver a cooptação de ocidentais para a Coréia do Norte. Isso, entre muitas outras coisas, em trezentas páginas.
Uma estranha viagem por um estranho mundo
Com um conteúdo tão rico, a forma desta escrita talvez incomode um pouco alguns leitores, já que a descrição das tecnologias envolvidas pode tornar algumas passagens mais tediosas. Mesmo assim, é perceptível que isso não é fruto de descuido. Cronenberg, neste ponto, mostra que sabe realmente o que quer, sem importar-se com algum tipo de concessão comercial para agradar determinado tipo de público. A forma como os acontecimentos vão entrando em um ciclo cada vez mais insano e difícil de assimilar, a partir da metade do livro, talvez também seja uma intenção deliberada, mas essa é uma quebra de ritmo muito forte, onde acabamos nos perguntando sobre determinado(s) personagem(ns), ignorado(s) por um bom tempo.
Outro ponto a comentar diz respeito ao nosso relacionamento, como leitores, com esses protagonistas. Exceto pela insinuação de um perigo mais direto, em um breve momento, não existe envolvimento a ponto de torcermos ou temermos pela segurança de Nathan ou Naomi. Parece que a ideia é atrair o interesse somente através do absurdo destas situações, algo que realmente acontece, mas ao aceitar entrar neste mundo, é melhor preparar-se para essa e outras quebras de convenções narrativas (inclusive um final polêmico), ainda que isso já seja sempre esperado de um artista/pensador de vanguarda.
A estreia de David Cronenberg no mundo das letras não se sustenta apenas no peso de seu nome. Mesmo com a possibilidade de uma adaptação cinematográfica – sem o autor dirigindo, conforme palavras do próprio – está longe de ser um pretenso best-seller com aspirações à tela grande. Consumidos consegue tocar em alguns pontos nevrálgicos atuais, convidando o leitor a interpretar a obra pelo olhar de alguém que pensa e critica sua própria época, assumindo a influência de Philip K. Dick, citado nominalmente no estranho mundo de Nathan e Naomi.
Somente este espírito já vale a leitura. Que venha o próximo!