S.K. Vaughn prova que o vazio está inteiro em Através do Vazio
Em Através do Vazio, o escritor S.K. Vaughn se gabarita como ótimo exemplo da indústria literária que produz à toque de caixa. Com um potencial imenso para discutir e dialogar sobre temas relevantes, infelizmente acaba como uma obra ansiosa para ser adaptada à TV ou cinema.
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Como sempre, à sinopse: No ano de 2067, May Knox, comandante da primeira missão tripulada para Europa, uma das luas de Júpiter, acorda sozinha em sua nave e descobre que algo deu terrivelmente errado. Seus colegas sumiram, sua saúde está debilitada e quase todos os sistemas estão inoperantes. A Nasa e seu marido Stephen Knox, que estão na Terra, são os únicos que podem ajudá-la numa trama de solidão e catástrofe.
Livro lançado pela Suma de Letras em 2019, Através do Vazio é um exemplo de como a ficção tem uma amplitude de subgêneros. Histórias Alternativas, Utopia, Distopia, Sci-Fi Militar, Fantasia Urbana, Fantasia Científica, Pós-Apocalíptico e tantos outros. Aqui o livro tenta ser um Hard Sci-Fi (que busca mostrar a evolução científica através de avanços especulativos em paralelo das verossimilhanças do nosso mundo), mas algumas escolhas ruins o tornam um pretenso Soft Sci-Fi (com mais desenvolvimento humano), o que tira, em partes, o peso proposto pelo conceito da obra em questão. O fato do bom Space-Opera (ficção científica espacial) vivido pela protagonista fazer parcas variações com acontecimentos na Terra, também contribui para uma falta de concatenação e o que poderia ser um estudo de personagem, se perde em uma narrativa que tenta diluir vários nichos e, assim, falhar na metáfora de um Ícaro tentando não perder suas asas por se arriscar a voar onde não deveria, como acontece na Mitologia Grega.
May Knox é uma protagonista que começa bem, mas contém alternâncias irreais. Se em alguns momentos ela está acabada, entregue e depressiva à desesperadora situação que ocorre no espaço, em outros parece uma pessoa espirituosa, alegre e destemida. Em raras ocasiões há uma real sensação de medo por sua segurança. É possível perceber que Vaughn tentou fazer de May uma personagem cosmetizada na medida para um empoderamento feminino que aqui se mostra errático — por vezes irritadiço —, pois também a faz abraçar uma dependência generalista masculina que afeta o seu desenvolvimento. Poderia ser um equilíbrio interessantíssimo e filosoficamente discutível, se não fosse intrusivo e repentino. O que “disfarça” a situação são as excessivas catástrofes que a protagonista precisa resolver constantemente, servindo muito mais à uma cortina de fumaça da obra do que um senso real de perigo e que se são catárticas, não passam disso. Mas há um alento em May: o fato dela ser negra aqui não é um parâmetro estritamente social, contendo poucas citações e a única que se aprofunda no preconceito é uma mensagem positiva e muito intimista.
Stephen Knox, marido de May, começa unidimensional e ganha camadas no decorrer da trama. Elas o tornam suavemente interessante, mas se mostram hiperbólicas no clímax como um misto entre racionalidade e emoções desprezíveis. Chega a ser estranho que ele seja celebrado desta forma, para não dizer normatizado pelo autor dada as atitudes questionáveis do personagem. Não há o contraditório, apenas a exaltação, aceitação e orgulho. Então, se May foi feita para o público feminino, Stephen foi pensado no público masculino que poderia se sentir incomodado pela presença independente da protagonista. Chega, inclusive, a ser engraçado como Vaughn enfia ali e sem muito alarde um trauma no coprotagonista somente para justificar uma enfadonha situação perto de seu final. Torna-se superficial demais para um homem que caminha no espaço frequentemente e viaja para estações espaciais o tempo todo.
Pragmatismo
Essa falta escancarada de qualquer pragmatismo faz de ambos os personagens estranhamente rasos e, eventualmente, até inconvenientes pois perdem todo o fardo de suas posições gradativamente para serem desenvolvidos somente à base de situações extremas. Tudo isso regado à exageros, roteirismos tremendos feitos para grifar emergências, mas depois são facilmente esquecidos e sem consequência alguma em TODAS as situações. Ferimentos deixados de lado, questões sobre vida alienígena, algumas motivações e governo que se vale de milícias assassinas, além de uma situação totalmente condenável que acontece no Clímax e é justificada de forma silenciosa pelos personagens por um senso de “as coisas são como são”. Uma explicação tão fútil que chega a perplexar ao pensar que uma ideia estapafúrdia dessas tenha passado pelo editor.
Também há algumas inserções de Deus Ex-Machina pelo livro e que são hilárias de tanto que se levam a sério. Chega a ser constrangedor que aconteçam apenas quando a história demanda continuidade e não como objeto de complementação. Não funciona nem como sátira à temática, o que faz que as facilitações ocorram pifiamente em prol dos envolvidos.
Quanto estrutura de texto, há alguns problemas na localização geográfica e temporal entre presente e passado. Por vezes é informado onde e quando a narrativa aporta, por vezes é deixado ao leitor “descobrir”. Isso não é exatamente uma novidade em livros com flashbacks, mas é sempre impressionante que continue acontecendo sem uma justificativa que justifique à narração. As cenas de ação são confusas e demandam muita atenção, por vezes precisando ser relidas por causa de excesso de descrições ou elementos demais na cena. Empolga pouquíssimas vezes. Os termos científicos são complicados e futuristas ao extremo. Eventualmente haverá explicação sobre o que certas coisas são, já em outras, o leitor será deixado no escuro.
O Clímax sofre pela inoperância da escrita de S.K. Vaughn, dando desfechos fáceis e os roteirismos pesam ainda mais. Se ele acerta com momentos de coragem em que se arrisca, em seguida recua para o blasé. Todas as pontas soltas criadas nas 372 páginas de história são resolvidas nas vinte finais, tornando o Desfecho corrido e simplório demais para questões tão sérias que o autor ensaia em provocar.
Mas nem tudo é ruim. Eva, a inteligência artificial, é uma boa personagem e que tem uma evolução didática. O vínculo que ela cria com May é sincero e se é pouco funcional, toca pela inocência da personagem diante de sua comandante e as situações além de seu controle. A tensão e os diálogos na história são operantes e não comprometem. A imagética é pontualmente instigante muito em proveito da esfera seccionada que é a nave, chamada de Hawking II, e toda a visualização deste colosso espacial é marcante. Outro ponto positivo é a noção de isolamento que, quando acontece, causa uma paranoia agradável de acompanhar. Infelizmente isso se perde em determinada altura da história no vai e volta frenético entre personagens e seus curtos capítulos.
Isto posto, ao terminar Através do Vazio, fica a impressão de plasticidade, onde uma história tenta ser um storyboard de boas mise-en-scénes literárias, mas que erra brutalmente por uma escrita obtusa de S.K. Vaughn. Com uma história desnutrida e com pouquíssimo a dizer, está longe de ser qualquer tipo de representação competente quanto odisseia espacial. Com uma Estética desapegada da menor profundidade possível, vale por uma protagonista com altos e baixos, as raríssimas qualidades que apresenta e por uma I.A. divertida. No geral, é uma obra covarde, fraca, feita sem esmero necessário e com poucos atrativos. Ficção Especulativa pode, sim, ser uma aventura, mas nunca do autor.
Simplesmente decepcionante.