Pit Agarmen faz do nada um objeto de estudo em A Noite Devorou o Mundo
A cultura se vale dos zumbis para falar de metáforas há décadas. Seja na crítica social sobre massificação do entretenimento, no usual contexto de pessoas que agem de maneira cada vez mais estranha diante das diversidades de opiniões, ou até mesmo na maneira dependente no uso da internet. Mas no livro A Noite Devorou o Mundo (que ganhou um filme em 2018), Pit Agarmen traz à tona a autofagia de ser engolfado pelo caos.
Habitualmente, à sinopse: Um homem acorda de um porre após uma festa e descobre que, nas oito horas que esteve dormindo, uma hecatombe zumbi de proporções mundiais aconteceu. Sozinho e isolado num apartamento do terceiro andar de uma amiga provavelmente morta, ele precisa lidar com a solidão no conforto de seu esconderijo, enquanto a horda de zumbis aumenta exponencialmente na rua abaixo.
A Noite Devorou o Mundo foi publicado em 2014 pela Editora Rocco e contém 206 páginas.
Livros são, em essência, um pedaço do autor. Em maior grau ou em menor grau, o objeto de estudo real da literatura acaba sendo que há de intrínseco da mente do escritor ao expulsar pensamentos. Some-se isso à metodologia ali existente e voilá!, há algo a ser analisado, parametrizado, criticado e, por consequência, sofredor de um veredicto por vezes cruel. Mas há casos onde a literatura vira as costas à maioria destas convenções e se torna maior por motivos pequenos e significativos.
Indubitavelmente, Pit Agarmen, anagrama e pseudônimo do escritor francês Martin Page, faz exatamente isso. Ela não apenas questiona o gênero já tão desgastado de zumbis, mas o faz mostrando os perigos de estar consigo mesmo, ainda que em segurança. E há, inicialmente, três fatores que contribuem para o sucesso do livro e que se interligam:
- Narrador em Primeira Pessoa ao colocar um Protagonista sem nome (que aqui será chamado apenas de “Protagonista”) como um registrador de um diário do horror que se desenrola três andares abaixo, no chão de uma rua em Paris, França. Por estar tão distante do solo, vendo passivamente a morte ser tão brutal, a escolha narrativa permite um observador de linguagem culta, porém aterrorizado ao mesmo tempo que está seguro e sem faltas de provisões. Ao mesmo tempo que se tem tudo, não possui nada, tolhido pela limitação de um prédio abandonado;
- Inferências como base para o livro. Por mais que os zumbis sejam a razão da existência do Protagonista ao escolher em prosseguir vivo, a base da obra segue as suas reflexões da sociedade, seus conhecidos, suas desesperanças e catarses internas. Não poucas as vezes o personagem tergiversa inúmeras vezes sobre fazer faxina, falar da falta de água ou luz, relembrar o passado, celebrar uma flor, admirar os pássaros e outros momentos diversos. A saúde mental é preposta ante o horror de corpos decompostos que andam e devoram os sobreviventes;
- Racionalismo Cartesiano. Esta é uma linha criada por Descartes que define que a realidade precisa, antes de ser aceita, ser contestada veementemente e após sua comprovação, assimilá-la. O que o autor faz aqui é curioso: Ao colocar o Protagonista numa situação de proporções apocalípticas, ele precisa duvidar de parte de si e abraçar o novo: o “eu conflitante” diante do caos e tédio.
Este último ponto é, de longe, o mais palpável. A constância que o personagem muda de ideia é mais do que demonstração de instabilidade, torna-se refúgio diante do isolamento. A dúvida é parâmetro para novos pensamentos e ressignificações assim como Lionel Verney de O Último Homem, escrito por Mary Shelley, tem seu espaço referencial com esta semelhança. Mas o paulatino endurecimento que é apresentado pelo Protagonista também é extremamente comparável a Robert Neville, personagem principal de Eu Sou a Lenda, mas com um diferencial: Se Neville era movido pela curiosidade, fuga do ócio e pelas tentações hedonistas, A Noite Devorou o Mundo apresenta alguém que é transformado de um pobre escritor antissocial para um irônico e acidental elitista involuntário, mas solitário. E o ócio da segurança endêmica que se encontra é usado como finalidade para que se discuta não apenas as necessidades de uma pessoa, mas toda uma construção social e normativa sobre o que era comum e o que se tornou “lendário” com o pós-apocalipse e a nova normatização, com um pé fincado na mais absoluta filosofia. Quem já leu a história escrita por Richard Matheson, e seu impactante final, há de entender perfeitamente este comentário.
Alguns clichês também são bem estruturados dentro do contexto, como a comida que quase nunca acaba ou a conveniência de um prédio sem nenhum morador (morto) vivo, entre algumas outras. Estas licenças poéticas são utilizadas como um artifício para que a verdadeira discussão, a interna, seja o foco. Este pode ser um Calcanhar de Aquiles ao leitor que vê o Apocalipse Zumbi majoritariamente ou somente como uma ode ao sobrevivencialismo extremo e escolhas difíceis, mas cabe aqui tanto a Suspensão de Descrença como um pouco de tolerância.
E essa sobrevivência tem algumas nuances muito interessantes dentro da história. Colocar, mesmo vagamente, os animais domésticos como possíveis aliados dos zumbis é instigante e, como tudo na história, não demanda interesse de seu porquê, mas sim em sua prática. São duas oportunidades bem aproveitadas e densas, maximizando a sensação de perigo iminente após as paredes de um edifício. A ironia francesa também é bem encaixada em diversas situações e sempre discretas, o que exige uma leitura atenta para detectar a maioria delas.
Falando dos zumbis, não há grandiosidade nestes antagonistas, mas aqui se torna é um processo aceitável já que eles são apenas o início de um ocaso degradante capitalizado pelos sentimentos do personagem principal e, após, repassado ao leitor em forma de devaneios. São ameaçadores quando necessário, despertam simpatia em outros momentos, mas na maioria das vezes o que se sente é pena. O Protagonista flerta com a humanização de seus algozes diversas vezes. E por mais que a relação entre ele e os mortos seja propositalmente instável, variando rapidamente entre admiração, pavor, horror, ojeriza e sentimentalismo, é tudo muito orgânico. O autor consegue tornar esta dinâmica bem balanceada entre a introspecção, a filosofia que zumbis carregam e, claro, o gore que uma obra do gênero necessita.
Literatura quase perfeita
Dentro destes contextos, Pit Agarmen é eficiente, mas com pequenos escorregões ao cair na tentação de, em determinado momento, moralizar o discurso sobre a queda humana sua correlação já tão batida com a futilidade. Não se torna um pecado capital pela proposta da obra, mas sim um erro ao permitir tantas subjetividades ao longo das mais de duzentas páginas para, ao final, querer direcionar suavemente o leitor para alguma conclusão.
Isto posto, A Noite Devorou o Mundo é um livro complexo, porém incrivelmente dinâmico e que consegue, ao mesmo tempo, fugir com classe do usual. Está longe de ser uma leitura prepotente, mas se leva a sério e tem material para tanto. Episódico, prende a atenção e traz importantes reaproveitamentos intimistas ao gênero, tornando-se, então, atemporal, falando a todo o momento numa espécie de Ágora literária sobre pensamentos. Com diversos pormenores, evidencia a hipérbole que é o fim do mundo, sobretudo quando o micro dentro de nós está implorando para ser exposto perante o nada que assola.