A figura de Muhammad Ali transcendendo os ringues
Se alguém argumenta que o pugilismo não é mera selvageria e que existe elegância na chamada Nobre Arte, é certo que o nome Muhammad Ali será citado. Não apenas alguém que dominou como poucos o ofício, deixou um legado imensurável que não se restringe aos fãs e atletas do boxe. Falecido em 2016, teve uma vida mais fantástica que muitas ficções. Entre seus feitos, existe um que talvez seja o mais lembrado. Tanto que rendeu o livro A Luta (The Fight), escrito por Norman Mailer em 1975, hoje em catálogo pela Companhia de Bolso.
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Antes se seguirmos nas proezas de Ali e por quais motivos este livro é especial, um pequeno desvio. É provável que qualquer pessoa que já tenha algum conhecimento sobre o mundo do boxe já saiba qual é o assunto. Talvez tenha descoberto só pela imagem da capa. Evidentemente, também já saberá qual é seu desenlace. Por que ler, então?
Além de ser um documento sobre a época e inspirador, A Luta é um trabalho muito característico de uma vertente jornalística chamada New Journalism. Desenvolvida entre as décadas 1960 e a seguinte, distinguiu-se pela utilização de técnicas de ficção em textos de não-ficção. A ideia era escapar da mera descrição dos fatos e conferir uma perspectiva subjetiva ao caso em questão, envolvendo o leitor de uma forma muito mais pessoal.
Truman Capote, com seu A Sangue Frio, em 1966, é um dos autores mais lembrados. Juntaram-se a ele Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter S. Thompson (já encarnado no cinema por Johnny Depp) e, claro, Norman Mailer. Um ano depois de uma histórica disputa de título dos pesos-pesados, onde Muhammad Ali chocou o mundo pela segunda vez, Mailer tinha seu fantástico relato publicado nos EUA.
O contexto
Cassius Marcellus Clay Jr. chocou o mundo pela primeira vez em 1964. Aos 22 anos, tão esguio e rápido que nem parecia peso-pesado, conquistou o título de campeão mundial, derrotando Sonny Liston, uma verdadeira máquina de bater. Era o início de uma lenda, turbinada pela teatralidade e bravatas verborrágicas nas aparições do jovem talento. A conversão ao islamismo e a mudança de nome foram reações à segregação racial.
Em 1967, teve o título e sua licença de lutador cassados, por conta da recusa em alistar-se para a Guerra do Vietnã. O lado ativista do ídolo ganhou destaque durante esse tempo. A sentença foi anulada três anos e meio depois. Entre 1971 e 73, perdeu uma vez para Joe Frazier e outra para Ken Norton, vencendo os dois nas revanches, e a caminhada pela recuperação do título persistiu. O último obstáculo para este objetivo chamava-se George Foreman.
O então campeão era uma força da natureza. Se Mike Tyson em seu auge poderia ser chamado de sobre-humano, Foreman precisava de algum neologismo superlativo para defini-lo. Já havia aniquilado Joe Frazier e Ken Norton nos primeiros rounds, oponentes que Muhammad Ali venceu por pontos ao fim de doze exaustivos rounds. Com Norton, inclusive, teve decisão dividida. Comparando estilo e condições gerais, tudo indicava que Ali seria trucidado.
Ali, bomaye!
O evento conhecido Rumble In The Jungle foi marcado. Ali X Foreman, valendo o título dos pesos-pesados, teve Don King nos bastidores e aconteceu em 30 de outro de 1974, em Kinshasa, no antigo Zaire. A disputa, antes e depois, e tudo que havia em jogo ali foi muito mais do que apenas um acontecimento esportivo. É exatamente essa a razão de ser de A Luta.
O cinema já se ocupou deste recorte histórico. O premiado documentário Quando Éramos Reis, de 1996, é imperdível e um complemento e tanto para o livro de Mailer. Quem viu Ali (2001), dirigido por Michael Mann e protagonizado por Will Smith atrás de um Oscar, deve se lembrar que estamos falando do final do filme, cujo espaço de tempo foi entre a perda da licença e a recuperação do título.
Rumble In The Jungle teve contornos épicos não apenas pela sua evidente conotação de Davi X Golias, que costuma atrair a atenção geral. Apesar de dois atletas negros subirem ao ringue, havia a questão de um embate racial, potencializado pelo ambiente africano. A conexão de Muhammad Ali com o povo local, não só pelo seu carisma expansivo, mas, sobretudo, pela sua postura ideológica, contrastava muito com o pouco articulado e apolítico George Foreman.
Não apenas isso, o então campeão piorou sua imagem ao levar um pastor alemão na viagem. Simplesmente, o povo ainda se lembrava da raça de cães usada pelos colonizadores brancos. Mesmo com a cor da pele em comum, a Foreman coube o papel de vilão, ainda que no resto do mundo fosse o franco favorito por motivos óbvios.
Quem ainda não sabia já deve ter percebido até aqui. Muhammad Ali venceu por nocaute, no oitavo round e usando uma técnica suicida. Digam o que quiserem sobre os prejuízos físicos causados por estratégias como essa, mas é uma proeza digna de um filme. Tanto que o longa de Michael Mann não chegou nem perto de empolgar tanto o espectador quanto uma reprise desta luta.
A Luta é uma aula para quem escreve e um prazer para qualquer leitor
Qual é o segredo para cativar um público que já sabe o final da história? Norman Mailer já tinha um excelente material nas mãos, mas o cuidado com os detalhes era essencial para não comprometer a experiência. Sua reconstituição dos fatos é notável, no sentido de preparar o terreno em uma tensão crescente que nos dá a impressão de acompanhar um romance.
Situando o leitor nas tensões raciais envolvidas, além do momento delicadíssimo na carreira de Muhammad Ali como lutador, é difícil não se contagiar com seu entusiasmo e energia. Mailer traduz o clima da equipe do desafiante, onde qualquer pausa nos treinamentos era o momento de um pequeno show. Torcemos por ele neste momento, ignorando que estamos lendo sobre fatos de conhecimento geral.
Enquanto nos eleva junto com o “protagonista”, a proximidade da luta é ameaçadora e uma coisa fica bem clara. Fora Ali e Angelo Dundee, seu treinador, ninguém acreditava de verdade que ele pudesse vencer. Nas horas que antecedem a disputa, o ambiente vai ficando mais pesado e, no calor da leitura, é possível até esquecer como isso termina e temer pelo destino de Muhammad Ali.
Não apenas um relato histórico bem escrito e preocupado com o prazer de quem o lê, A Luta é aquele tipo de livro que terminamos com um sorriso. Até mesmo lamentando o fim do prazer que essa jornada nos trouxe, mas inspirados pela confiança, pela fibra e pelo triunfo de Muhammad Ali. Já fora do âmbito do livro, o fim desta carreira não seria tão glorioso, mas nada capaz de ofuscar essa vitória específica.
Como se não bastasse tudo que já foi dito, também é um testemunho de uma época de ouro do boxe, a dos últimos campeões lendários.
(Saindo da vida real, o boxe também inspirou a Sétima Arte diversas vezes. Confira essa lista com dez boxeadores do cinema, um ranking da franquia Rocky e a crítica de Punhos de Sangue, cinebiografia de Chuck Wepner, cuja virada na carreira foi uma luta contra Muhammad Ali)