Faz alguns anos que Haruki Murakami é um forte candidato ao grande prêmio da literatura mundial – o Nobel. Ele ainda não venceu… ainda, mas o autor é claramente um dos mais admirados e populares escritores do mundo hoje, um brilhante representante de uma séria, mas também irresistivelmente atraente, literatura fantástica. Ele já é vencedor de prêmios de prestígio como o prêmio Kafka, o prêmio Jerusalem e, entre o público pop/nerd, o World Fantasy Award e o prêmio Hans Christian Andersen, agora em 2016. Seus romances mais conhecidos – Caçando Carneiros, Norwegian Wood, Kafka à beira-mar e The Wind Up Bird Chronicles (este ainda sem publicação no Brasil) – estabeleceram-no como uma espécie de escritor cult entre círculos de leitores universitários, uma experiência parecida com o ocorrido com as obras de Tolkien entre a década de 1960 e a seguinte.
1Q84, seu penúltimo romance (sucedido pelo ainda não publicado no Brasil Colorless Tsukuru Tazaki and His Years of Pilgrimage), é uma única imensa história publicada no Japão originalmente em três volumes, formato respeitado pela sua editora aqui no Brasil, a Alfaguara, entre 2012 e 2013, cerca de dois anos depois de finalizada em seu país natal. Já possui também uma coletânea no formato de box – o que é altamente recomendável, pois diminui um pouco a cacetada do preço dos três separados, mas também pelo fato de que assim que você começar a ler, dificilmente vai conseguir parar.
Murakami possui muitos dons como escritor, mas o maior deles talvez seja um quase sobrenatural para narrativas de suspense fantástico. O que, vamos concordar, é uma habilidade muito particular, que evoca desde os grandes mestres globais do gênero, como Franz Kafka – uma de suas explícitas e declaradas inspirações – e Jorge Luis Borges, até nomes menos conhecidos como o brazuca Murilo Rubião, um dos grandes representantes desse gênero, relativamente celebrado lá fora, mas virtualmente esquecido no seu próprio país.
No início de 1Q84, nós temos uma jovem chamada Aomame, que se vê presa em um engarrafamento de uma via expressa elevada da região metropolitana de Tóquio. Carregando consigo um objeto afiado em sua bolsa e vestida de forma deslumbrante, Aomame está preocupada pois pode se atrasar para um compromisso extremamente importante. Como se estivesse lendo a mente dela, o taxista subitamente a avisa de que existe uma escada de serviço de emergência próxima de onde eles estão, e que ela leva para uma rua perto de uma estação de metrô. Ele faz ressalvas em relação a ela descer aquelas escadas não muito confiáveis de salto alto e uma mini-saia, mas esclarece que o metrô é a melhor alternativa para que ela não se atrase ao seu compromisso. Conforme ela abre a porta do carro, o motorista lhe diz apenas uma coisa, sem qualquer explicação – “Não deixe as aparências te enganarem. Existe apenas uma realidade”.
Sim e não. Com Murakami, tudo é tão simples quanto pode de um momento a outro deixar de ser. Quando Aomame chega ao hotel de luxo para o seu compromisso – sua profissão, aliás, requer uma série de “treinamento e habilidades muito especializadas” – ela não está mais no ano de 1984, uma deliberadamente óbvia homenagem a uma das maiores obras sobre distopias. O mundo “mudou de fase”, e ela subitamente adentrou uma espécie de realidade alternativa, que ela eventualmente batiza de 1Q84. Uma breve explicação – a letra Q, em inglês, e o número 9, em japonês, são homófonos: “kyu”. Nesse mundo paralelo, nada parece muito diferente de início, mas gradualmente Aomame percebe que certos aspectos da história e da cosmologia daquele lugar são diferentes do que ela estava acostumada, e que praticamente quase todas essas mudanças estão relacionadas a uma misteriosa comunidade chamada Sakigake. Na sua origem, Sakigake se parece com qualquer outra cooperativa orgânica liderada por radicais universitários e refugos dos anos 60, mas ela recentemente foi fichada pelo governo como uma instituição religiosa que progressivamente cresce e se torna mais rica e poderosa. Muito se fala, mas pouco se sabe de um misterioso Líder.
Enquanto isso, Murakami estabelece uma segunda trama, alternando as aventuras de Aomame, que vão se tornando progressivamente mais perigosas, com a do solitário aspirante a escritor chamado Tengo. Contra o que diz o seu bom-senso, Tengo foi convencido por seu editor Komatsu para, em segredo, revisar um conto chamado “Crisálida de Ar” para que esta pudesse ser inscrita e vencer um grande prêmio literário. A trama é fantástica – envolve pequenas criaturas chamadas de “Povo Pequeno” que emergem da boca de uma cabra morta – mas sua autora, uma menina de 17 anos, é ainda mais estranha. Muito bela, mas irritantemente inexpressiva, Fuka-Eri mal pode ler ou escrever, e sua maneira de falar é artificial, truncada e lacônica. Ela insiste que todos os detalhes de sua trama são absolutamente verdadeiros e que você pode inclusive ver o Povo Pequeno se você se esforçar. O pulo do gato nessa bizarrice – aparentemente injustificada – está nas origens de Fuka-Eri, pois até seus 10 anos de idade, ela vivia com o Sakigake.
Devagar e de forma inconspícua, Aomame e Tengo vão desbravando seus caminhos em direção um ao outro, mesmo conforme forças conflituosas tentam impedir ou promover o encontro de ambos. No caminho, cada um interage como uma série de personagens que sustentam a trama. Existe uma viúva tremendamente rica que fundou uma organização que acolhe e cuida de esposas violentadas por seus maridos, além de (secretamente) punir esses agressores de forma ostensiva; um guarda-costas homossexual de extrema eficiência e um gosto para a especulação filosófica; um advogado deficiente de determinação obstinada e inteligência afiada; uma jovem policial com uma inclinação ao sexo fetichista; o pai moribundo de Tengo, que passou a maior parte da sua vida batendo de porta em porta por conta do seu trabalho; e, bizarrice das bizarrices, um homem que estupra adolescentes – ou é estuprado por elas.
Apesar de 1Q84 ser um autêntico e distinto Murakami, muitos dos seus elementos internos pagam tributos a outras obras primas da ficção. Além do já mencionado “1984”, de George Orwell, você pode perceber desde referências mais óbvias, como a Crisálida de Ar que rapidamente evocam os casulos replicantes do clássico Vampiros de Almas, até a assustadora descrição da sala escura onde Aomame confronta o líder da Sakigake pela primeira vez, que remonta a um clássico da ficção pouco conhecido no Brasil, O Homem que foi Quinta-Feira. O autor usa de suas vastas referências literárias, que oscilam entre clássicos pulp e grandes nomes da literatura fantástica, para costurar uma história que vai progressivamente se tornando mais estranha, mas sem perder o fio da meada em nenhum momento. É uma construção épica baseada em detalhes, como as repetidas referências a Sinfonietta de Janacek. As diversas alusões aos bizarros rituais envolvendo o Líder e suas damas de santuário, pela assombrosa frase “irremediavelmente perdida” e, mais opressivamente, pela repentina presença de duas luas no céu, uma que seria a que nós conhecemos e outra que parece levemente coberta por algum tipo de verde de vegetação. Certamente não é um bom sinal quando um dos personagens percebe que sua língua está coberta com o que parece ser o mesmo tom de verde que se vê nessa lua.
Apesar da sua enorme extensão, a trama de 1Q84 é sucintamente desenvolvida, sem excessos. Murakami sabe como desenvolver um diálogo, mesmo os mais densamente filosóficos, sem se tornar maçante. Em alguns momentos, principalmente no último volume, a obra pode causar essa impressão de torpor e lentidão, mas o amigo leitor que estiver atento perceberá que é deliberado. Um efeito que lembra a progressão dos capítulos de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ou a primeira parte de Memórias do Subsolo, de Dostoiévsky. Na verdade, não é a única referência que se pode fazer ao autor russo, pois o diálogo de Aomame com o Líder sobre a natureza do Bem e do Mal rapidamente lembra o debate entre Ivan e o diabo no clássico Os Irmãos Karamazov.
Mas não se assuste, amigo leitor. Se esses petardos clássicos são um pouco densos demais para sua paciência, Murakami também tem a habilidade de descrever com facilidade situações cotidianas e diálogos rápidos, além de momentos que chamam bastante atenção pela quantidade, qualidade e intensidade do sexo na trama. Ele cria um suspense sobre a ascendência de Tengo, deixando implícito que um personagem pode ter reencarnado com memórias de suas vidas pregressas e deixa pistas sobre as verdadeiras intenções do Povo Pequeno, que podem incluir conquistar a humanidade sutilmente. Na verdade, se tudo isso parece assombroso e bizarro demais, há inclusive a hipótese deixada no ar de que é a imaginação de Tengo que transporta Aomame para o mundo de 1Q84. Como nas melhores ficções fantásticas, muito é dito, mas pouco é explicado.
É inquestionável que o amigo leitor vai desfrutar dessa enorme saga que, ao melhor estilo de Murakami, pendula entre um suspense transcendental, uma ficção com ares do fantástico e uma história de amor. Em verdade, Murakami está mais preocupado em desenvolver as urgências dos seus personagens e sua história do que explicar os detalhes do funcionamento da sua realidade ou amarrar todas as pontas soltas que ficam pelo caminho. Uma espécie de anti-Nolan literário. Evoca grandes clássicos da literatura, mas não perde do seu horizonte aquelas características típicas de revistas pulp, formato, aliás, ainda relativamente popular no Japão.
Pois bem, as histórias de Murakami têm a capacidade de realmente transportar pessoas para outros mundos? A maior parte dos críticos não sabe muito bem como lidar com ele. O preconceito de que estabelece sobre um autor que é tão popular, particularmente entre o público mais jovem, é bem conhecido, só que o sucesso desse autor deixa bastante clara uma sanha, um desejo por aquilo que é incomum, pelo bizarro e pelo fantástico. A maior parte dos personagens do gênero comercial moderno conhecido como “ficção literária”, o que quer que isso queira dizer, tem como certas uma espécie de experiência metafísica e se preocupam quase que exclusivamente sobre as complexidades mais elevadas das circunstâncias e dos relacionamentos. Através da obra de Murakami, por outro lado, vemos que seus personagens nunca param de se debater com questões relacionadas a natureza do tempo ou das mudanças, a consciência, escolhas morais, ou pelo simples fato de perceberem que estão vivos, seja neste mundo ou em outro. Nesse sentido, todas as heroínas e heróis de Murakami são, de alguma forma, filósofos em estado bruto. É apenas natural então que seu trabalho atraia as mentes mais novas, para quem os problemas da existência ainda são novidades, assim como àqueles que nunca conseguiram transcender esses questionamentos.
Que os trabalhos de Murakami, como 1Q84, possam servir de alento àqueles que sentem todos os dias que foram jogadas, sem a sua permissão, nesse infindo labirinto chamado “existir”.