A Gaiola da Morte e a onda “Kickboxer”
Muito antes das proezas aéreas e capoeirísticas do filme Besouro, em 2009, as artes marciais já haviam dado as caras em filmes inteiramente produzidos no Brasil. A primeira vez em O Judoka, de 1973 e dois anos depois em Kung Fu Contra as Bonecas, sendo o primeiro uma adaptação de um personagem brasileiro de HQ e o segundo uma comédia nonsense. No entanto, o foco aqui é o primeiro exemplar “sério” do tipo. Essa idéia começou a tomar forma no início da década de 90, quando era praticamente impossível visitar as locadoras de VHS e não encontrar uns dez filmes, no mínimo, cujo título ostentava a palavra “Kickboxer” em letras garrafais.
Tal qual aconteceu com a febre de filmes de ninja nos anos 80, foi encontrado um filão rentável nas aventuras de baixo orçamento estreladas por artistas marciais de vários tipos físicos e etnias. A iniciativa de explorar o termo “Kickboxer” veio de um filme de 1989, cujo título era simplesmente esse, e contava com Jean-Claude Van Damme no papel principal. Van Damme, na época uma estrela deste tipo de produção, teve seu maior sucesso até então. O estrago estava feito.
A cara-de-pau nessa linha de produções baratas com títulos parecidos, muitas delas lançadas direto para vídeo, não se restringia apenas aos produtores gringos. Filmes com algum tipo de luta, lançados no Brasil durante essa onda, tiveram seus nomes traduzidos da forma mais oportunista possível, tendo como bom exemplo um filme com Jackie Chan de 1991, chamado Operation Condor, que foi exibido nos cinemas daqui e lançado em VHS com o surtado título Um Kickboxer Muito Louco!
Em 1992, auge de Van Damme e congêneres nas locadoras e cinemas, era também uma época em que ainda se ouvia muito as pessoas reclamarem que cinema nacional era apenas sacanagem. Nesse cenário, o produtor Fauzi Mansur resolveu capitalizar a moda importada de uma forma que ninguém havia tentado, produzindo o primeiro e único filme brasileiro a entrar na onda kickboxer. Assim nasceu A Gaiola Da Morte, que evitava o rótulo no título, mas não no conteúdo .
Mansur era um veterano do cinema nacional, tendo ocupado funções diferentes em produções diversas. Embora tenha no currículo a direção de filmes de terror, e como roteirista uma adaptação do romance “O Guarani”, será lembrado pelas pornochanchadas que produziu e dirigiu aos montes na Boca do Lixo em São Paulo. Para dirigir a película, no melhor estilo pau-pra-toda-obra, foi escalado Waldir Kopezky, outra figura conhecida na Boca que dirigiu vários outros filmes produzidos por Mansur.
É certo que nenhum produtor do mundo poderia encontrar no Brasil da época algum cineasta especializado em sequências de ação ou coreografias de luta, mas não deixa de ser engraçado que os responsáveis por tentar inserir o gênero porrada no cinema nacional sejam também, respectivamente, produtor e diretor de Devassa e Ordinária, A Noite do Troca-Troca e Minha Égua Favorita. Nos três, Kopezky é creditado com o pseudônimo de Fernando Ferro.
Faltava ainda o elenco. Que tal utilizar algum lutador de verdade com alguma fama? Paulo Zorello era campeão de kickboxing e aparecia em capas de revistas especializadas. Não chegava nem perto de ser o que Anderson Silva ou Vitor Belfort são hoje, mas tinha lá sua cota de notoriedade, pelo menos entre os fãs de lutas e praticantes, e teve algumas disputas transmitidas pela TV. Protagonista escolhido, o restante foi preenchido com lutadores profissionais para as cenas de pancadaria – o que realmente interessava – e atores desconhecidos para os demais papéis, exceção talvez a Ênio Gonçalves, numa pequena participação.
Falar sobre o roteiro de um filme como esse é uma tarefa questionável. Afinal, se nem os primos um pouco mais endinheirados dos EUA e Ásia ligavam muito para isso, por que na terra do jeitinho isso importaria? A verdade é que essa lógica parece ter sido levada a sério demais em A Gaiola da Morte. A história gira em torno de uma policial que procura o irmão desaparecido, descobre um esquema em que lutadores são atraídos a um local onde são aprisionados e obrigados a lutar até a morte numa gaiola de bambus cheia de estacas afiadas. As lutas são filmadas e comercializadas pelos bandidos. A moça – vivida por Claudia Abujamra – pede ajuda a um campeão de kickboxing chamado Paulo Zorello, detalhe que revela a imaginação do roteirista (compreensivelmente não creditado). O sujeito pega a garota, se infiltra no esquema, sai no braço e resolve tudo.
Deve-se levar em consideração que esse resumo, sendo uma colagem esperada de clichês de outros filmes do tipo, nem é a pior coisa, mas quando se ouve um diálogo em que a mocinha diz ao herói –NÃO SE ANIME MUITO e o pretenso galã responde – PUXA, VOCÊ ESTÁ SOMBRIA… então você percebe que está diante de algo que é de um mau-gosto abissal. Tudo embalado naquele áudio dublado tão característico do cinema nacional das antigas, o que torna o tom de farsa muito mais gritante. E falando em farsa, nada mais deprimente do que ver esse elenco tentando levar a coisa a sério. Todos muito ruins, mas a inexpressividade de Zorello merece uma menção especial, pois faz Schwarzenegger (como Exterminador) parecer Marlon Brando.
Nada de Bullet time. Aqui é na raça!
Nessa altura você pode perguntar se não haveria alguma qualidade na parte da ação. Confira por si mesmo no vídeo abaixo, onde nosso capoeirista mostra que já desviava de balas sete anos antes de Neo descobrir que era o Escolhido:
Sobre as coreografias, única possível tábua de salvação de um projeto como esse, se já não tinham nada de convincente na época, em tempos de UFC é preciso encontrar uma nova denominação pejorativa. O responsável pelo som ainda dá sua contribuição para piorar tudo, abusando de ruídos irreais que em alguns momentos parecem disparos de uma calibre 12. A edição é a cereja do bolo, insistindo em mostrar as pontas das estacas para criar algum suspense, como na cena a seguir. A desenvoltura em arte dramática dos indivíduos em cena é um bônus:
A Gaiola da Morte é uma daquelas excentricidades do nosso cinema que, acredito eu, muitos envolvidos gostariam de esquecer que fizeram parte dela. A obscuridade é tanta que não tenho informação nem mesmo se chegou a passar nos cinemas, embora o trailer tenha sido exibido nas salas do centro de São Paulo. O VHS foi lançado e a internet, mais cedo ou mais tarde, trata de resgatar essas pérolas do limbo. Se alguém achar que exagerei quanto aos atributos do filme, a chance de conferi-lo completo está aqui, com toda a glória do mullet esvoaçante de Paulo Zorello: