Gabriela Amaral Almeida lançou o longa-metragem A Sombra do Pai no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Uma garota órfã de mãe e que tem uma relação distante com o pai encontra alento no flerte com o sobrenatural e nas madrugadas embaladas por filmes B de terror. Esta pode ser a descrição de Dalva, protagonista de A Sombra do Pai, novo trabalho da cineasta baiana radicada em São Paulo, Gabriela Amaral Almeida. O longa, apresentado pela primeira vez na telona durante o 51º Festival de Cinema de Brasília, colocou a cineasta em uma situação inusitada, já que seu longa anterior, O Animal Cordial, estreou em agosto e continua em cartaz em algumas cidades do país.
A Sombra do Pai conta a trajetória de Dalva (Nina Moreira), de nove anos que tem que assumir responsabilidades de adulto quando seu pai, Jorge (Julio Machado) sofre um acidente de trabalho. Órfã de mãe, ela busca uma figura materna na tia, Cristina, interpretada por Luciana Paes, que levou o prêmio de melhor atriz coadjuvante no festival. O filme ainda levou os troféus de Melhor Som e Melhor Montagem. Gabriela já havia saído premiada do mais tradicional festival de cinema do país em outras duas ocasiões, com os curtas-metragem A Mão Que Afaga,em 2011, e Estátua!, em 2014.
Com A Sombra do Pai, Gabriela apresentou na tela do Cine Brasília o exemplar mais lapidado de sua carreira até agora. Mestre em literatura e cinema de horror pela Universidade Federal da Bahia e com especialização em roteiro pela Escuela Internacional de Cine y TV (EICTV) de Cuba, a moça bateu um papo com o Formiga Elétrica sobre o novo filme, suas influências, como é produzir cinema de gênero no Brasil e seu trabalho de preparação junto ao elenco.
Formiga Elétrica – Como foi lançar o filme num festival importante como o de Brasília?
Gabriela Amaral Almeida – É uma responsabilidade muito grande e também uma visibilidade muito bem-vinda para o filme. É um festival que me é muito caro. Aqui as coisas são sempre muito intensas.
FE – Você já afirmou várias vezes sobre a importância do cinema de gênero na sua formação cinéfila. Como elas se fazem presentes no seu processo de criação dos filmes?
GAA – Não sei dizer com precisão como aplico minhas influências. Todo artista começa a criar a partir de uma sensação. Eu trabalho muito buscando saber qual é o meu alcance para criar os personagens. Não gosto muito de impor uma referência para a equipe ou para mim mesma. Mas um filme que sempre esteve presente durante o trabalho de A Sombra do Pai foi O Espírito da Colmeia, do Victor Erice.
FE – Como foi a escolha da atriz mirim Nina Moreira para o papel de protagonista de A Sombra do Pai? E a escolha do Julio Machado para o principal papel masculino do longa?
GAA – A escolha da Nina foi por meio de testes. Foram cerca de 300 crianças inscritas, mas Nina se destacou pela vontade genuína de estar no set de filmagem. Houve uma preocupação grande para que ela ficasse à vontade e a atuação acontecesse de forma natural. Pra mim, todo ator é uma criança e todo o meu trabalho com os atores é de “desrracionalização”. Para Nina ter ideia do que era o filme, eu reescrevi o roteiro em formato de história infantil.
Com o Julio, a Alice Wolfenson, que era responsável pelo casting infantil, era amiga dele e nos apresentou. Fomos tomar um café e ficamos cinco horas conversando! Mesmo sendo uma pessoa muito sensível, ele tinha a força, a aspereza e a testosterona que o personagem tinha que ter, mas ao mesmo tempo uma aparência carente, um olhar de abandono. O Jorge vive o horror do mundo do trabalho, que faz parte do nosso cotidiano. Ele também é vítima e eu quis mostrar isso no filme. Não me interessa como diretora e roteirista criar um personagem masculino vilanizado.
FE – Desde os seus curtas-metragens, fica claro sua dedicação à direção de atores. Conte um pouco de como se dá esse processo com o elenco.
GAA – A minha relação com o elenco pode-se fazer em uma hora ou em um mês. Tem pessoas com quem você se conecta num lugar de vontade de comunicação de forma muito rápida, outras já levam um tempo maior. Por isso eu defendo muito o ensaio, pois é o momento de construir essa intimidade. Francis Ford Coppola leva os atores para uma fazenda e não é com o intuito de ensaiar, mas de cozinha, conviver. Isso cria um vínculo que faz com que você consiga enfrentar junto com o ator as adversidades de um set de cinema. Um set não é um lugar de ritual, como é o teatro. Eu acredito que é preciso convocar o máximo do ator para que ele se sinta dono da cena, e isso só se consegue quando se tem uma relação de confiança. Se eu der uma marcação para um ator, ele pode questioná-la, inclusive para se defender. Tem muito ator que é explorado e esse meu processo é para quebrar esse receio, esse medo. O cinema, pelo menos do jeito que eu faço, ainda é uma arte muito artesanal. É uma luta para que a rigidez, o tempo e a fragmentação não ganhe. Porque, muitas vezes, essa máquina é quem ganha da criação. Pode ter certeza de que alguns filmes que a gente chama de ruins, o diretor queria muito que fosse bom, mas ele acaba vencido pela máquina e descuidando do ator ou mesmo não conseguindo criar vínculos com a equipe. O ego precisa sair nesses momentos. Ninguém no set está fazendo mais do que ninguém, todos estão fazendo o suficiente para que o filme aconteça. O diretor imprime o tom da filmagem para todo o resto da equipe. Essa função de comando precisa ser muito clara e assertiva. Esse comando tem a ver com condução e não com imposição.
Clássicos B como referência
FE- Há duas cenas em A Sombra do Pai onde Dalva assiste filmes de terror clássicos na TV. Isso diz muito sobre a tua formação cinéfila, ligada ao cinema de gênero. Fale um pouco sobre como isso influenciou o roteiro do filme.
GAA – A Sombra do Pai é um filme que fala muito da minha infância, não tanto pela história, mas pela atmosfera. Fui muito influenciada pelo cinema de gênero americano, especialmente as produções de baixo orçamento, bem cinema B mesmo. Cresci durante os anos 80 e 90 e a gente não tinha TV a cabo. Os canais abertos compravam muito filme de gênero, pois a produção é muito grande e torna essas produções mais baratas. Como não havia muita produção nacional, a grade desses canais era preenchida com filmes. Lembro da Sessão da Tarde, Cinema em Casa, Corujão I e II…Como eu estudava à tarde, eu praticamente virava a noite assistindo filmes. Meu pai, que era engenheiro, e minha mãe, que era professora, iam dormir depois da novela e eu ficava lá, assim como a Dalva faz em A Sombra do Pai. Como o medo desses filmes era uma coisa que eu não podia externalizar, já que meus pais iriam descobrir que eu havia assistido aos tais filmes, eu convivi com essa sensação sozinha. Na verdade, esse medo era uma sensação confortável, no sentido que era algo que não podia ser tirado de mim. Hoje, assistir um filme de horror me traz uma sensação de familiaridade, de independência, de tudo que é positivo. E até de subversão. Nina não deixa de ser uma mini subversiva assistindo filmes de terror às duas da manhã.
Depois, vieram as locadoras, onde a maioria do acervo também era de cinema de gênero americano. Eu vivi o primeiro videocassete, os carnês de locação. Lembro do primeiro videocassete chegando na minha casa, era um evento. Eu tenho um apreço pelo filme que eu chamo de trash, o filme ligeiro, porque ele me conecta com essa sensibilidade. Não pelo filme em sim, mas pela experiência que ele me proporciona. O que me toca, é um cinema que as pessoas costumam desprezar. Adoro filmes mais cabeça também, só que essa é uma referência que já chega até mim intelectualizada, mas a fonte do meu trabalho está mesmo no cinema de gênero.
FE – O tipo de cinema que você faz tem uma preocupação grande com o desenho de som e atrilha sonora. Como é a sua relação com a equipe nesses quesitos técnicos?
GAA – É impossível dissociar o cinema de horror dos quesitos de som. Não me interessa citar o filme de horror, mas viver o filme de horror. E uma das entradas mais importantes para atingir o sensorial é a faixa musical. Não é tradição da gente usar isso porque é um signo de manipulação muito atribuído ao cinema norte-americano. Quem faz a parte de trilha sonora dos meus filmes é o meu marido, Rafael Cavalcanti. A presença dele na minha vida já é de uma convivência criativa e se estende para os meus filmes. É um parceiro de criação que vai amadurecendo comigo e que chega num estágio de construção sonora e de personagem que é sólido. O Rafael não está ali para ilustrar nada, sabe do respeito que eu tenho pelo gênero. No cinema de horror, o som é fundamental. O Daniel Turini, que é meu colaborador na mixagem do filme, lê os meus roteiros antes deles serem filmados e tem liberdade para fazer sugestões de mudança nas cenas. Para mim, isso é uma riqueza, pois é alguém completamente fresco lendo o meu roteiro a partir da função dele dentro da produção.
FE – O cinema de gênero é conhecido por, muitas vezes, utilizar técnicas de manipular o espectador e isso nem sempre é visto com bons olhos por alguns críticos e até por uma parcela do público. Como você lida com comentários assim, já que o seu cinema parece não ter nenhum pudor no uso de artifícios?
GAA – Eu sou uma cineasta do artifício. Sou alguém que tem suas referências principais nos cineastas artificiosos, como Douglas Sirk, Nicholas Ray, John Ford e muitos outros. Não posso negar essa natureza. Fazer filmes para que sejam louvados pela inteligência cinematográfica, não me interessa.
FE- Há uma nova geração de realizadores onde nota-se um desejo de filmar mas falta um arcabouço fílmico, referências e cinefilia. Quando você fala do seu filme, tanto da parte técnica como criativa, demonstra muita propriedade. Como você vê esse nicho que prefere a desconstrução à qualquer custo aos artifícios fílmicos?
GAA – Sou uma leitora voraz de ficção. Por ter minhas referências como norte do meu trabalho, sou colocada numa posição de respeito para com elas. Tem muita gente que mal conhece como funciona uma narrativa e já quer desconstruí-la. Não é o tipo de arte que me interessa consumir ou mesmo produzir. Não somos nós, mas o tempo que irá dizer quais obras vão perdurar. Mas eu concordo que falta um pouco desse arcabouço, dessas referências em alguns realizadores.
FE – A Sombra do Pai, assim como O Animal Cordial, são filmes de atmosfera, onde a direção de arte é uma das maiores colaboradoras para a construção da ambientação. Dalva, Jorge e Cristina tem relações fortes com objetos e lugares. Como você construiu isso?
GAA – Quando eu vou ensaiar com o elenco, eu alugo um galpão e faço plantas baixas. Os atores vão, ao longo do processo, ocupando territórios. Vários objetos fornecidos pelo diretor de arte já se fazem presente nesta etapa. No teatro, essa coisa ritualística com os objetos é muito importante no teatro e a gente precisa encontrar uma maneira com que eles sejam também presentes no cinema. Que não seja uma coisa fria, onde você chega numa locação e não sabe abrir uma gaveta, por exemplo.
Sobre a questão da atmosfera, quando você entende, junto com outros artistas como figurinista , diretor de arte e maquiador, sintonizar o tom e entender os subtextos das cenas. Não é como pegar um filme de Hitchcock, por exemplo, e dizer que quer uma parede igual. Se for assim, você se exime da responsabilidade da criação e se escora em algo que já existe. Isso é muito “umbiguista”. Você tira a chance das pessoas trabalharem, criarem. Quando você permite a criação, surge um cinema com o qual você tem gosto de trabalhar, cada profissional se sente um pouco dono do filme. E são! As pessoas não estão num set para executar meus caprichos, mas para investigarmos um negócio que nem eu sei o que é. Eu tenho intuições e as divido com essas pessoas. Entre erros e acertos, pois pra mim toda obra de arte é imperfeita, chegamos a um final, não porque chegamos ao ápice, mas porque era preciso encerrar. Acho lindo isso!
FE – Você acha que um dia o público brasileiro vai se orgulhar dos filmes de gênero feitos no Brasil? E qual os próximos projetos cinematográficos?
GAA – Isso seria muito legal. Mas não gostaria que fosse algo acadêmico, mas que fosse algo vindo do espectador mesmo. Eu filmo ano que vem um filme de exorcismo, que vai se chamar A Cadeira escondida. Mas antes, pretendo seguir levando A Sombra do Pai para festivais, como o de Tóquio, onde o filme vai ser exibido pela primeira vez fora do Brasil.