Uma Dama De Óculos Escuros Com Uma Arma No Carro é um típico suspense da Nouvelle Vague
Talvez, se não fosse pelos críticos de cinema da revista francesa Cahiers Du Cinéma e a teoria do autor por eles concebida, Alfred Hitchcock (falando nele, veja este vídeo) não seria tão reverenciado como é nos dias de hoje. François Truffaut, um desses críticos (e que depois se tornaria diretor), idolatrava tanto os filmes do cineasta inglês que fez de tudo para celebrá-los, chegando até mesmo a emulá-los (sempre filtrado pela linguagem da Nouvelle Vague) em suas próprias obras. Uma Dama De Óculos Escuros Com Uma Arma No Carro (La Dame Dan’s L’auto Avec Des Lunettes Et Un Fusil) parece ser exatamente isto: um suspense hitchcockiano em sua essência, mas com uma roupagem típica na Nova Onda francesa.
Pensando na trama do filme, não há como não estabelecer comparações com a de Psicose. Embora não sejam idênticas, elas são muito parecidas. Se, no longa de 1960, a personagem interpretada por Janet Leigh rouba dinheiro do seu chefe e, na viagem de fuga, acaba tendo o seu destino selado pelo encontro com um psicopata, no filme do diretor Joann Sfar, a protagonista, uma jovem secretária chamada Dany Dorémus (Freya Mavor), decide viajar sem permissão com o carro do patrão (Benjamin Biolay, de Personal Shopper), e, ao longo do trajeto, estranhos eventos começam a acontecer, colocando a sua vida em perigo.
Aliás, não são somente as tramas que guardam certa similaridade, também há algumas cenas que recriam momentos de Psicose, como a constante imagem da protagonista viajando em um carro e o seu encontro com um policial no meio da estrada. Além, é claro, da atmosfera de mistério. No entanto, apesar de conter todos esses elementos, não parece ser um filme de Hitchcock. De certa maneira, não tem a elegância controlada do Mestre do Suspense. O seu estilo despojado, mais jovem, livre e descompromissado lembra muito mais obras como A Sereia do Mississippi e, principalmente, De Repente, Num Domingo.
Porém, o mais interessante de tudo isso é que essas referências não são simplesmente jogadas no filme, como se fossem um exercício de estilo frívolo. Muito pelo contrário, essas estripulias estilísticas, típicas da Nouvelle Vague, coadunam perfeitamente com a história e a maneira como ela é contada. Joann Sfar encontrou no roteiro escrito por Gilles Marchand e Patrick Godeau (que foi adaptado de um romance do autor Sébastien Japrisot) o material perfeito para colocar em prática algumas das suas influências. Inclusive, é importante dizer que o trabalho do diretor e a sua equipe é excelente. Do ponto de vista técnico e temático, o filme é impecável. O maior problema serão as decisões tomadas pelos roteiristas no terceiro ato.
Mas, enquanto não chegamos lá, é preciso mencionar as características positivas do longa. Primeiramente, o destaque fica por conta da maneira com que Sfar filma a atriz principal. Dona de uma beleza estonteante, Freya Mavor, às vezes, é enquadrada por inteiro (reforçando, portanto, todo o seu encanto físico, que vai dos pés à cabeça), mas, em outros momentos, o diretor opta por ressaltar partes do corpo, como as pernas, os seios e as costas. Essas escolhas são essenciais não somente para filmar Mavor como se fosse uma Musa (da mesma maneira que Fanny Ardant ou Catherine Deneuve eram filmadas), como também para o estabelecimento de um clima em que o espectro do sexo é uma presença constante, atormentando a protagonista (e o espectador) de diferentes formas.
Em segundo lugar, a partir do instante em que coisas estranhas passam a acontecer, como o roteiro deixa o espectador em dúvida sobre a sanidade de Dany (não sabemos se algo realmente está ocorrendo ou se são projeções da sua mente), a iluminação suave e um tanto esfumaçada por raios de sol e a montagem repleta de fusões insinuantes e cortes rápidos (este tipo de montagem era muito comum na Nouvelle Vague), além de algumas sobreposições, são extremamente importantes tanto na construção da já mencionada atmosfera de sensualidade quanto na composição do estado psicológico da personagem. É fascinante pensar que os cortes rápidos e as elipses temporais representem possíveis lapsos de memória de Dany. Como os seus olhos são os nossos, na possibilidade de que ela seja louca, sentimos as mesmas lacunas que ela.
Por fim, em terceiro lugar, há a necessidade de destacar a forma óbvia, mas elegante, com que o figurino trabalha a personalidade dupla da protagonista. Ao mesmo tempo inocente e atirada, ela é uma personagem cativante. E ver como os grandes óculos e o crucifixo que carrega no peito simbolizam a sua candura, e o rosto livre dos óculos e as roupas que mais revelam do que escondem representam o seu lado mais ousado, é enriquecedor.
A absurdidade da revelação final
No entanto, como já foi dito acima, se todos esse destaques são suficientes para transformar Uma Dama De Óculos Escuros Com Uma Arma No Carro em uma experiência cinematográfica recompensadora, eles não conseguem impedir que as escolhas feitas no terceiro ato por Marchand e Godeau quase coloquem tudo a perder. Em muitos dos filmes de suspense atuais, o mistério é construído para que, ao final, haja uma revelação bombástica. Porém, na maior parte dos casos, os roteiristas preferem que essas revelações choquem e sejam vazias em vez de realmente acrescentarem alguma informação relevante sobre os personagens.
Infelizmente, é exatamente isso o que acontece no terço final do longa de Sfar. De todas as possibilidades levantadas pelo roteiro no decorrer da história, a solução encontrada pela dupla de roteiristas é mais previsível e desinteressante de todas. Além disso, exige que o espectador aceite uma série de coincidências implausíveis e, para piorar, não diz absolutamente nada sobre a protagonista. Era preferível que o choque fosse substituído pelo conteúdo. No final das contas, o filme acabou ficando sem as duas coisas.
Porém, independentemente disso, até o final do segundo ato, é um imenso prazer acompanhar a história de Dany. Uma Dama De Óculos Escuros Com Uma Arma No Carro é envolvente, sexy e charmoso. E ainda acha tempo para trazer aos dias de hoje um pouco de Hitchcock e um dos movimentos cinematográficos mais importantes da história. O público pode ficar um pouco decepcionado com o final, mas é difícil que ele não se envolva com a estética do filme. Ao término da sessão, não tem como não sair da sala sentindo falta filmes do cineasta inglês e da Nouvelle Vague. Ah, que saudade…