Não espere o clássico drama de boxe em Punhos de Sangue
Falar sobre a popularidade e apelo do personagem Rocky (assunto de um FormigaCast), além da relação com a vida real de Sylvester Stallone, é chover no molhado. Ainda assim, existe uma parte relevante desta história muito menos comentada, com desdobramentos muito interessantes, seja para fãs de Stallone/Rocky, admiradores do boxe ou mesmo para quem gosta de histórias reais inusitadas. É exatamente por isso que Punhos de Sangue (The Bleeder, que havia anunciado a mudança de seu título para Chuck) se ocupa em retratar a vida bagunçada de Chuck Wepner.
Se você nunca ouviu falar deste cavalheiro, lá vai. Em 1975, Wepner já era um pugilista veterano em uma carreira profissional de pouco destaque na categoria peso-pesado. Intercalando o ringue com uma ocupação de vendedor de bebidas, seu próprio apelido no esporte -The Bayonne Bleeder – era algo pejorativo, citando a facilidade com que ele sangrava nas lutas. Porém, naquele ano, vem a chance inesperada de enfrentar o então campeão Muhammad Ali. As chances contra o maior de todos os tempos eram nulas e ele mesmo sabia disso.
Vez por outra, a vida real pode nos surpreender mais do que a ficção. O que era previsto para durar três rounds, no máximo, acabou indo muito mais longe. O medíocre Wepner levou a luta até o último assalto, inclusive derrubando Ali durante o 9º round. Na plateia, um jovem Stallone assistia encantado à luta. Na mesma noite, o roteiro de Rocky começou a ser escrito e o resto é história. Ok, o que se desenrolou nas telas é bem conhecido, mas e a vida do homem que inspirou diretamente um dos personagens mais carismáticos do cinema?
Punhos de Sangue, por seu título em português, pode dar a impressão errada ao público. Não se trata de uma história cujo clímax e resolução se desenrola no ringue, em uma disputa gloriosa e redentora. Dirigido pelo pouco conhecido Philippe Falardeau, a partir do roteiro de Jeff Feuerzeig (diretor do documentário sobre Wepner para a ESPN), Jerry Stahl, Michael Cristofer e o protagonista do filme, Liev Schreiber (de Spotlight), o filme tem a disputa com Ali e seu resultado como estopim da cadeia de acontecimentos.
Quatro roteiristas é um péssimo sinal. Felizmente, o tipo de problema que isso costuma gerar não aparece aqui. O filme tem uma proposta clara e coerência narrativa que se mantém do início ao fim. Contextualizando o espectador sobre seu personagem principal e seu ambiente, a construção da personalidade dele e de sua situação é eficiente, inclusive em suas falhas e temores. Após a mítica luta e a estreia de Rocky, a jornada desesperada de Wepner em vincular sua imagem à do boxeador fictício, distanciando-se da realidade, é que leva o drama adiante, revelando mais camadas dele. Não é surpresa que alguém assim se meta em encrencas, ainda mais na tresloucada década de 1970, quando a cocaína virava moda nos EUA.
A direção de Falardeau não tenta ousar em momento algum, o que é uma faca de dois gumes. Se por um lado entregou uma cinebiografia muito bem feita em sua proposta, talvez chateie uma parcela do público por conta dos recursos bem conhecidos. A narração em off do protagonista e o desenvolvimento em flashback são exemplos disso, mas, dentro de sua zona de conforto, Punhos de Sangue é uma experiência muitíssimo valorizada pelo seu elenco.
Elenco e parte técnica valorizam o conjunto
Liev Schreiber tem a chance de sumir na personificação de Chuck Wepner e assim o faz. Com pouca maquiagem, a entrega do ator é notável, convencendo dentro e fora do ringue. Com uma malandragem (admirável a opção dos realizadores em incluir um detalhe polêmico sobre a queda de Ali e as táticas de Wepner no decorrer do combate) que o torna ainda mais humano e carismático na tela, Schreiber se sai muito bem na composição deste tipo multifacetado. Elizabeth Moss (da série Mad Men), como a esposa Phylis, confirma sua competência com uma personagem que vai tolerando o marido mulherengo até onde pode e, sem qualquer exagero, expressa muito bem os bons e maus momentos, com bastante espaço para a atriz mostrar seu talento.
O cuidado na direção de atores é perceptível. Naomi Watts, como Linda, mesmo aparecendo pouco, tem uma bela performance. Ron Pearlman faz o treinador Al Braverman, em um papel menor, mas bem interpretado. Entre os tipos famosos que participaram desta trajetória na realidade, Morgan Spector foi uma boa escolha como Stallone, emulando bem a expressão corporal e vocal do verdadeiro Sly, sem forçar muito. Pooch Hall como Muhammad Ali já não convence tanto, mas não chega a comprometer. No caso deste último, cabe um adendo sobre a cena do combate, muito bem encenada e enriquecendo a verossimilhança do filme.
Ao lado do elenco afinado, a fotografia de Nicolas Bolduc (de O Homem Duplicado) confere o ar setentista que o filme pede. A textura da imagem emula muito bem a época em questão, trabalhando muito bem com a reconstituição feita pelo bom design de produção, deixando o filme bem servido também tecnicamente. Embora acerte mais do que erre, as ressalvas em Punhos de Sangue ficam mesmo concentradas em seu texto. Mais precisamente, na forma como trata dois personagens.
O próprio treinador vivido por Ron Pearlman é um caso, desaparecendo do filme sem qualquer menção posterior. A mesma sorte tem o melhor amigo de Chuck, John (Jim Gaffigan), que tem um destaque razoável antes de sumir, deixando no ar a dúvida se alguma cena com ele não acabou descartada. É possível que a quantidade de roteiristas envolvidos tenha resultado nisso, mas essa especulação não muda o fato de que existem pontas soltas. Em contrapartida, o personagem do irmão de Chuck (Michael Rapaport) tem duas aparições, mas justifica bem sua presença na trama.
Chegando ao final, Punhos de Sangue mostra que tinha algo a dizer através da história de Chuck Wepner, o que é muito gratificante para seu público. Acaba se tornando uma reflexão sobre como algumas pessoas se deixam definir apenas por um momento específico, sacrificando muito de si mesmas neste processo. Dizer que a vida real não é como nos filmes pode ser um grande clichê, mas faz todo sentido aqui.