Martin Scorsese retoma seus temas mais característicos em O Irlandês
Se existe algo de bom nesta época em que os serviços streaming ganharam força, é justamente a oportunidade que eles oferecem a diversos profissionais. Depois de Alfonso Cuarón lançar seu Roma graças à Netflix, em 2018, a empresa líder no segmento topou bancar ninguém menos que Martin Scorsese, em um projeto ambicioso com Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci. Através da trajetória do assassino profissional Frank Sheeran, O Irlandês (The Irishman) traz um recorte sombrio dos Estados Unidos sob a influência da máfia ítalo-americana.
O roteiro de Steven Zaillian (da série The Night Of) tem como base o livro de não-ficção escrito por Charles Brandt, I Heard You Paint Houses: Frank “The Irishman” Sheeran & Closing the Case on Jimmy Hoffa. Advogado e ex-promotor, Brandt entrevistou Sheeran na velhice, que confessou vários assassinatos a serviço do crime organizado, inclusive revelando a suposta causa do desaparecimento de Jimmy Hoffa, um dos grandes mistérios dentro do mundo conspiratório estadunidense. Um depoimento contestado depois, mas que serve muito bem a uma encenação cinematográfica.
Abrangendo cerca de cinco décadas da vida de Frank Sheeran (Robert De Niro), o filme mostra como um simples motorista de caminhão caiu nas graças da máfia, em finais da década de 1950. Através de um contato inusitado com o chefão Russell Bufalino (Joe Pesci), ele acaba se tornando uma figura importante nos bastidores do jogo de poder dentro de outra instituição influente no país, o sindicato dos caminhoneiros. Isso o coloca em contato direto com o lendário líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino), dentro de um emaranhado que envolve até o assassinato de JFK.
Não apenas pelo diretor e a temática geral, o longa chama atenção por reunir o cineasta a De Niro e Pesci, dois co-protagonistas de um de seus filmes mais lembrados, Os Bons Companheiros. Falando em reuniões, Al Pacino e Robert De Niro também tem a chance de atuar juntos novamente, o que nos ajuda a esquecer o fiasco de As Duas Faces da Lei, de 2008. Além disso tudo, também havia a expectativa em torno dos resultados do rejuvenescimento digital, para que não houvesse troca de atores nos diferentes e distantes momentos temporais da narrativa.
Um Scorsese clássico em um esforço conjunto admirável
Facilmente, O Irlandês tem sua ambição e ousadia recompensada em todos os quesitos, com todos os envolvidos dando tudo de si pelo sucesso da empreitada. O roteiro de Zaillian não atenua ou justifica os atos de Frank Sheeran, o que deixa o espectador intrigado, pois já o encontramos adulto e propenso ao crime. Por outro lado, ele não é um protagonista simplesmente exalando maldade, já que tem uma vida doméstica tranquila. Porém, é exatamente neste ambiente que ele é exposto ao olhar inocente e, pela sua própria perspectiva, acusador de sua filha, algo do qual, diferente da lei, ele não pode escapar.
Com quase três horas e meia de duração, Scorsese faz aquilo que seus admiradores de longa data já esperam. Sem exagero em nenhum dos recursos empregados, a quebra de quarta parede, a violência tratada de forma crua e os planos-sequência lembram muito o já citado Os Bons Companheiros, por exemplo. Na elegância dos maneirismos comuns do cineasta e na montagem sempre sóbria da parceira de longa data, Thelma Schoonmaker, o filme nos puxa para dentro do mundo escuso do protagonista, costurando evento por evento de uma forma orgânica, sem que sua duração bem além do padrão pese. O domínio narrativo é evidente em cada minuto do longa.
Repetindo a colaboração de O Lobo de Wall Street e Silêncio, Rodrigo Prieto foi o responsável pela bela fotografia, contribuindo para a atmosfera realista do filme. O uso consciente da iluminação, sem qualquer firula estilística, ajuda a tornar esses personagens bastante críveis, provando que a concepção visual do filme foi cuidadosamente planejada para caminhar de mãos dadas com a proposta geral.
Jovens outra vez
Evidente que o elenco é um componente que estimula grandes expectativas aqui, potencializadas pelo uso maciço do rejuvenescimento digital. Muito bem recompensadas, por sinal. Sobre o recurso tecnológico, é um trabalho impressionante e abre várias possibilidades para o Cinema. Pouco depois do início e passado algum deslumbramento, o efeito especial passa despercebido e o filme nos leva.
Como isso por si só não basta, Robert De Niro entrega uma performance digna de sua bagagem, convencendo nos três períodos temporais do filme. Sem grandes arroubos de emoção, algo que destoaria muito do clima do filme, o veterano compõe seu protagonista na sutileza de expressões e olhares que dizem muito sobre o que se passa em sua mente. O desenvolvimento de Sheeran não rouba para si o holofote, que está sobre um contexto muito maior do que ele, com engrenagens muito mais interessantes e complexas do que o indivíduo em si.
Esse tipo de abordagem poderia ter ofuscado o personagem título, mas seu funcionamento é mais uma prova do esperto planejamento da estrutura dramática, graças também à capacidade do ator. Os parceiros de cena também estão à altura, com Joe Pesci emprestando seu carisma a Russell Bufalino, sem qualquer trejeito mafioso estereotipado e demonstrando bem a diferença entre os extremos da idade do personagem no período da história.
Já o Jimmy Hoffa de Al Pacino rouba a cena. Encarnando uma figura icônica da vida real, o intérprete está mais do que à vontade em um papel-chave, não apenas para a trama geral, mas para os alívios cômicos do filme. Não que o Hoffa mostrado em O Irlandês seja algum tipo de palhaço, mas a construção narrativa segura estabelece o personagem como alguém mais passional que os outros, o que cria um contraste muito interessante. Cheio de manias, quando ele perde o controle por qualquer motivo o público até ri, mas isso soa como um traço desta personalidade incomum, e não como uma tentativa do filme em chamar atenção.
Com todos esses traços mais particulares bem delimitados, todo o elenco exibe uma química incrível. Não se trata apenas de um novo encontro de atores lendários de uma mesma geração, o que já garantiria uma classificação de “grande evento”, pois não demora muito para que a entrega de cada um fique evidente, além do entrosamento geral.
E ainda tocando no assunto da idade recuperada desses atores em cena, existe outro tipo de juventude impresso na tela. Martin Scorsese faz o favor de desmentir argumentos sobre cineastas que pioram com a idade, demonstrando destreza e disposição invejáveis, aliadas à experiência que só vem com o tempo. Saindo um pouco dos méritos técnicos e narrativos do filme, a consciência sobre sua trajetória profissional torna a sessão até inspiradora de alguma forma.
Por tudo isso, ou seja, pelos motivos que realmente importam, O Irlandês merece ser chamado de grande evento. Um tiro mais do que certeiro da Netflix, acreditando em um dos maiores realizadores do Cinema e apostando em uma tecnologia usada a serviço do roteiro e da atuação. Indiscutivelmente, já é um marco e esperamos que pavimente o caminho para outras produções ousadas.