O cheiro da controvérsia impregnou Ninfomaníaca desde o primeiro anúncio do projeto. Lars Von Trier em um filme de sexo (quase) explícito parecia uma equação, cujo resultado seria a rendição de um cineasta muito competente à fórmula fácil de apenas chocar plateias frágeis. O genial, e um tanto incompreendido, Anticristo já tratava também de elementos da sexualidade. Seu filme seguinte, Melancolia, participando do festival de Cannes em 2011, rendeu uma curiosa entrevista, em que o diretor fez comentários pró-Hitler e acabou expulso do evento. Motivações à parte, parecia que a polêmica era a alma do negócio, mas ainda não dava para saber o que viria a seguir.
Última parte da “Trilogia da Depressão” com os dois outros filmes citados, Von Trier, um depressivo assumido, realiza em Ninfomaníaca mais um estudo profundo de personagens femininos, e surpreende solenemente quem esperava estratégias vazias de chocar por chocar. O filme começa com Joe (Charlotte Gainsboug), a personagem-título, caída e machucada no meio da rua. É encontrada por um morador da vizinhança, Seligman (Stellan Skarsgård) , que a ajuda e acolhe, ouvindo a história de sua vida desde a infância para descobrir como ela acabou naquela situação. Em flashbacks, a narração da mulher madura é carregada de auto-comiseração e culpa, não poupando Seligman, ou o espectador, com meias palavras ou imagens insinuadas, algo que pode realmente incomodar aos muito sensíveis ou excessivamente moralistas, mas o verdadeiro mérito é que aqui, o sexo é apenas a primeira camada de uma análise muito mais profunda sobre alguém que vive escravo de uma compulsão.
A dinâmica entre esses dois personagens solitários, a princípio, parecia indicar que Seligman seria uma espécie de alter-ego do público, fazendo as indagações mais óbvias a Joe, apenas para servir como transição dos capítulos, já que é um filme episódico. Embora em determinados momentos ele diga algo que verbaliza o sentimento do espectador, ainda é muito mais do que um mero instrumento para criar diálogos explicativos entediantes. O personagem foi construído com personalidade, o que traz metáforas e comparações muito específicas e interessantes dentro do próprio filme, adicionando mais substância ao tema proposto. As discussões entre eles passeiam, apropriadamente, por coisas tão aparentemente díspares quanto um tipo de garfo, a polifonia de Bach e Edgar Allan Poe. Tudo se encaixa no relato da protagonista, que se revela ignorante sobre a maioria dos assuntos que ele aborda, como caberia a qualquer um com um distúrbio tão intenso. Com essa complexidade, o elenco está à altura do texto e é bastante coeso dentro do clima de frieza do filme, já que acompanhamos tudo pelos olhos da protagonista. Destaque para Stacy Martin como a jovem Joe e Uma Thurman, em uma participação rápida, porém marcante.
Complementando, o visual merece considerações à parte, pois como já é costume nos filmes do cineasta, é nada menos que perfeito. O diretor de fotografia Manuel Alberto Claro, que ocupou a função também em Melancolia, repete o ótimo trabalho que realizou no filme anterior de Von Trier. Do clima melancólico e opressor da rua deserta no início, passando pela frieza do apartamento de Seligman, até às sequencias bucólicas da infância e adolescência da personagem ao lado do pai, as imagens estão em perfeita sintonia com a história, além de exibirem uma beleza incomum em cenas triviais.
Com inserções visuais que correm o risco de desagradar uma parcela do público, um detalhe que não me incomodou, mas que pode até ser encarado como algo que em algum ponto enfraquece a obra, Ninfomaníaca Vol. 1, aumenta a aura polêmica de seu diretor. Digo isso não somente pelo seu tema e sua forma corajosa e contundente ao trata-lo, mas pelo fato de que apesar da declaração infeliz sobre o nazismo em 2011, ele continua a mexer na ferida, incluindo nos diálogos do filme uma frase explicando a diferença entre antissionismo e antissemitismo. Quer mais? A trilha sonora tem Rammstein, uma banda alemã de Heavy Metal que é acusada de apologia ao nazismo. Provocação ou não, esses detalhes não tiram o filme do seu foco principal, mas rendem mais um pouco de conversa sobre o que passa na cabeça do cineasta. Independente disso, que março chegue logo com a segunda parte, e que o fim da jornada de Joe seja tão interessante quanto sua primeira metade.