As particularidades de Missão: Impossível – Efeito Fallout
Missão: Impossível – Efeito Fallout (Mission: Impossible – Fallout) é, nitidamente, um filme de franquia. Muitos dos seus elementos referenciam os cinco primeiros longas, e a história continua fortemente atrelada aos eventos de Missão: Impossível – Nação Secreta, a obra anterior. Porém, ao passo que esses aspectos se encaixam naquilo que poderíamos considerar ser uma camada exterior da construção cinematográfica, corre, internamente, uma força que, integrando tudo o que encontra pela frente, reúne — ao mesmo tempo que supera — as principais características da série iniciada em 1996 por Brian De Palma, criando, assim, uma narrativa ainda inédita.
Geralmente, filmes de ação alternam entre cenas acrobáticas e outras mais calmas. Na franquia Missão: Impossível, isso sempre foi evidente. Embora apresentando diferentes níveis de qualidade, todos os filmes possuem sequências que se destacam dos demais momentos, os quais costumam ser formados por alívios cômicos, um fornecimento reduzido de informações acerca do protagonista e pela introdução de dispositivos altamente tecnológicos. São instantes em que a narrativa se assenta para indicar os caminhos trilhados pela história, explorar a química entre os personagens e criar a antecipação para o verdadeiro ápice: as sequências em que Tom Cruise (A Múmia, Feito Na América, Jack Reacher: Sem Retorno) desafiará as limitações do próprio corpo.
No entanto, o novo filme tem uma estrutura diferente. Missão: Impossível – Efeito Fallout é o primeiro longa da franquia a privilegiar o todo e não algumas de suas partes. Não há tempo para esperar a próxima sequência porque esta já se coloca em funcionamento enquanto a anterior ainda se desenrola. Os momentos tecnicamente mais ousados quase se atropelam, e nas cenas em que há diálogo é possível notar os movimentos sutis da engrenagem. Cada uma das etapas da nova aventura de Ethan Hunt passa a impressão de que está conectada com a próxima. Mas se engana quem acha que isso é obtido unicamente através de uma colagem de planos. Para atingir tal efeito, Christopher McQuarrie, o roteirista e diretor, lança mão de diversos recursos.
O primeiro deles é a pluralidade de vozes, pontos de vista e percepções. Na história, há muitos interesses em jogo, e os personagens dificilmente são claros sobre as suas intenções. O assassino vivido por Henry Cavill (Batman Vs. Superman: A Origem da Justiça, O Agente da U.N.C.L.E., Liga Da Justiça), por exemplo, é ambíguo e trabalhado por McQuarrie de uma maneira séria e cômica. Já a personagem interpretada por Vanessa Kirby é a típica femme fatale, com a sua postura misteriosa e intrigante. Além deles, há o retorno de faces antigas (como Solomon Lane e Iris Faust) e a introdução de novas. Por consequência, essa multiplicidade funciona como uma polifonia, na qual várias melodias individuais se unem numa única composição.
A trilha sonora, por sua vez, é essencial para que haja vínculos entre momentos distintos. Se por um lado, algumas músicas compostas por Lorne Balfe são derivativas de trabalhos alheios (a influência de Hans Zimmer é clara, principalmente na cena do túnel, que lembra a de Batman – O Cavaleiro das Trevas), por outro, dialoga perfeitamente com a narrativa. São as batidas da percussão e a onipresença de certos temas que não deixam o ritmo desandar e que incluem as cenas menores num desenvolvimento mais amplo, que visa sempre o fim, a conclusão da trama.
Nesse desdobramento, a decupagem e montagem também exercem uma função vital. Missão: Impossível – Efeito Fallout é violento como nunca foram os outros filmes protagonizados pelo agente especial. Porém, não falo da violência física ou explícita e sim daquela que está impressa na maneira como McQuarrie organiza os personagens dentro do quadro (ressaltando a fisicalidade dos atores e a urgência do momento) e o montador Eddie Hamilton alterna entre diferentes sequências (o que é exigido pela quantidade de situações se desenrolando simultaneamente). Não há um ângulo que passe despercebido ou que não seja devidamente explorado.
A grande atração do espetáculo
Entretanto, nada disso funcionaria se não existisse um elemento capaz de unir todas essas ramificações. Em outras palavras, Missão: Impossível – Efeito Fallout desabaria caso o centro das atenções não fosse Ethan Hunt. Mesmo com o mundo à beira de um ataque nuclear, a decupagem e os cortes brutais, a trilha onipresente e vários personagens coadjuvantes, tudo gira ao redor do protagonista, o qual é aprofundando, só que não através de cenas introspectivas ou monólogos dramáticos (este último sai da boca de um emocionante Ving Rhames). O que McQuarrie faz com o personagem é muito mais sutil.
A ideia de odisseia — reafirmada no início pelo plano detalhe do famoso livro de Homero — é caracterizada por uma conexão entre o humano e o mito. Quanto mais se atém aos sofrimentos físicos de Ethan, mais McQuarrie o aproxima de evitar que todos os seus sacrifícios anteriores sejam desperdiçados pelo plano dos vilões (o distanciamento da ex-esposa, inclusive). E quanto mais assinalada é a humanidade do protagonista, mais ele se aproxima de um caráter mitológico (a cena em que caminha pela igreja e o instante em que é filmado por uma câmera baixa são representações imagéticas dessa elevação).
Já a mise-en-scène é inteiramente concebida em função do personagem e do poder que ele exerce diante dos outros, assim como da sua relação com as paisagens ao redor. Como resultado, o filme propõe a noção grega de herói, do sujeito que contém aspectos humanos e divinos. Não é à toa que os terroristas alimentam desejos antirreligiosos e que Luther (Rhames) fala sobre confiança. McQuarrie deixa claro que enxerga o protagonista como alguém maior que a vida, quase uma entidade na qual as pessoas podem depositar as suas esperanças. Não coincidentemente, olha para essa “semi-divindade” pela mesma lente que mostra o seu lado humano.
Ao fazer isso, entrega a consumação do que foi a jornada de Ethan nas últimas décadas. Missão: Impossível – Efeito Fallout é realização de tudo o que estava evidente ou meramente delineado nos filmes anteriores. Põe um ponto final nesse longo capítulo e apresenta a aventura apocalíptica que sempre ameaçou o protagonista. Curiosamente, também revela uma página em branco, pronta para ser preenchida por outras linhas. Trata-se do fim que também oferece o vislumbre de um reinício.