Garota Exemplar, A Garota que você deixou pra trás, A Garota que eu quero, A Garota do Livro….há algum tempo, a palavra garota tem sido um rótulo usado como chamariz para jovens à procura de uma literatura composta por suspense, aventura, drama e um pouco de romantismo, não necessariamente nesta ordem. Muitos livros, nos últimos anos, têm apostado na moda iniciada pelo similar A Menina que Roubava Livros, com diferentes níveis de sucesso, mas todos de olho no cinema como catapulta para a popularidade. Os filmes, assim como as obras originais, apostam no formato certo, com elenco de renome, fotografia sóbria, direção séria e trilha sonora envolvente, ingredientes na medida para dar um ar de maturidade e respeito a uma produção advinda de um texto pós-adolescente na maioria das vezes. Agora é a vez de A Garota no Trem (The Girl On The Train, Tate Taylor, 2016, EUA)
Trata-se da adaptação do romance homônimo, escrito pela britânica Paula Hawkins e publicado há pouco mais de um ano. Antes mesmo de esquentar lugar nas prateleiras e se confirmar como sucesso editorial, o livro já entrava em pré-produção para o cinema com o selo respeitável da Universal Pictures e elenco de primeira linha, prova da confiança dos produtores no sucesso fase das Garotas. O filme, como o livro, conta a história de Rachel (Emily Blunt, do ótimo Sicario), na verdade, uma mulher de 40 anos alcoólatra e solitária que passa os dias viajando de trem entre Nova York (Londres, no original) e uma cidade vizinha. No caminho, ela cria fantasias com as casas que observa pela janela, sobretudo uma em específico, na qual imagina diferentes situações com o casal de moradores. Um dia, Rachel observa da janela de seu vagão uma situação estranha que destrói os devaneios felizes que construíra, jogando-a numa trama policial inesperada.
A Garota no Trem é um filme de personagens acima de tudo. A complexidade de cada integrante da história é o grande interesse do filme, se sobrepondo à sequência de eventos da trama. A estrutura central gira em torno de três mulheres. Além de Rachel, o fio condutor, temos Anna (Rebecca Ferguson, de Missão Impossível: Nação Secreta), a nova esposa de Tom (Justin Theroux, Império dos Sonhos), ex-marido de Rachel, e a jovem Megan (Haley Bennett, de Sete Homens e Um Destino), babá da filha de Tom e Anna e moradora da casa que prende a atenção de Rachel todos os dias. Os homens também tem um papel importante no drama de Rachel. Tom por, ser o pivô da derrocada existência da ex-mulher, e Scott, marido de Megan, com quem a protagonista cria um conflito paradoxal, primeiro por idealizá-lo, ao lado da esposa, como modelo de perfeição, depois, pela tensa relação causada pelos acontecimentos que se desenrolam e intensificados pela confusa mente de Rachel. Há ainda o psiquiatra Dr. Kamal Abdic (Édgar Ramirez, de Joy, o Nome do Sucesso), que involuntariamente passeia pela vida das três mulheres, causando graves consequências.
Três mulheres e três homens que se interconectam para nos mostrar a angústia existencial que a convivência a dois pode causar. Em diferentes níveis, cada um deles tem um imenso cabedal interno de reflexões e desejos que, raramente, resulta em momentos felizes. Nesse aspecto, cada personagem carrega a imensa responsabilidade de não apenas fazer parte, mas ser uma parte fundamental da história e, nesse aspecto, as mulheres se destacam esplendorosamente. Blunt, Ferguson e Bennet estão ótimas em seus papéis, capazes de se expressar, apenas com olhares e movimentos de rosto, todo o sentimento de não-pertencimento que as palavras não são capazes de traduzir. Destaque ainda maior para Emily Blunt, que constrói com veracidade uma Rachel que luta para encontrar forças para voltar a amar a si própria e encontrar a verdade que a salve da autodestruição. O amor próprio que mais lhe falta, fazendo-a se submeter ao sofrimento causado pelas dúvidas que tem sobre as próprias memórias e sentimentos. Ferguson também brilha em um papel que cresce ao longo da trama de maneira planejada e surpreendente, e Bennet, com talento para administrar o mistério e a desorientação da sua personagem que a leva a um caminho trágico.
Se as mulheres são o ponto mais alto do filme, o mesmo não de pode dizer se seus parceiros do sexo oposto. Infelizmente, o elenco masculino não está à altura da complexidade da obra, impactando negativamente o desenvolvimento da produção. Personagens importantes, como Scott, perdem força drasticamente sob o peso da interpretação robótica de Luke Evans, que parece ter sido escolhido apenas pela carga sexual que carrega. Integrante fundamental, Tom, ganha um ar frouxo e pouco convincente na pele de Justin Theroux, ator que sempre parece pensar ser mais do que é. Um pouco acima da média nesse trio está Édgar Ramirez, também um pouco duro em cena, mas o único que consegue transmitir algo um pouco além do óbvio, embora sob fortes limitações.
A narrativa segue uma estratégia não linear, recurso que intencionalmente confunde o espectador na primeira hora do longa. Por muito tempo não sabemos direito se o que estamos vendo é real ou um delírio da cabeça de Rachel. Confundimos personagens e fatos, a todo o momento apresentados de forma diferente na visão da protagonista. Nada mais necessário pra exemplificar a confusão mental pela qual ela passa, uma alcoólatra que não confia nos próprios pensamentos e se perde no sofrimento pela sensação de impotência sobre a própria vida. Somos transportados para a mente dessa garota em pele de mulher, compartilhando parte de sua angústia por não saber se é, ela própria, responsável por uma tragédia que está mexendo com a vida de muita gente.
A Garota no Trem é o terceiro longa-metragem dirigido por Tate Taylor, que – logo na estreia – levou seu Histórias Cruzadas à indicação de melhor filme no Oscar 2012. No trabalho atual, sua direção é irregular, com acertos e erros permanentes. Ao acertar na escolha na narrativa não linear, ele falha um pouco na sua condução, tornando a bem intencionada confusão da trama um tanto cansativa em determinados momentos. O diretor, entretanto, mostrou talento em manejar uma atmosfera sombria e tensa, com uma fotografia que reflete as sombras que obscurecem cada personagem, mas exagerando na dramaticidade desnecessária em situações pouco convidativas.
Independentemente da irregularidade da direção, A Garota do Trem é uma bela reflexão sobre a alma feminina e a complexidade da existência. Sobre como o amor-próprio é fundamental para se alcançar a verdade e a paz e como ele pode ser uma poderosa contra a subjugação. Embora seja um suspense envolvente, assista-o como análise psicológica centrada nas três mulheres principais e você terá conteúdo para muitos questionamentos e conversas interessantes após a projeção. E um filme que se prolonga no público após os créditos finais será sempre um trabalho bem-sucedido.