Como É Cruel Viver Assim é um retrato da autoconfiança dos brasileiros
Como É Cruel Viver Assim conta a história de quatro pessoas sem nada a perder, que se juntam para sequestrar um milionário a fim de conseguirem dinheiro para mudar suas vidas. No entanto, eles não têm nenhuma experiência ou noção do que é necessário para o sequestro e, assim que avançam no ato, os seus medos e desejos vêm à tona.
Considerado uma comédia dramática, o filme mostra que a comicidade está nas situações cotidianas, pois trata-se de um drama humano em que os problemas sociais se sobressaem ao ponto das pessoas procurarem, na criminalidade, uma possibilidade de vida melhor. O foco principal do filme não está no ato do sequestro por dinheiro em si, mas em realizar algo grande o bastante para deixar as suas marcas e se tornarem pessoas inescrupulosas. As risadas provocadas durante o filme acabam sendo risos nervosos, por entendermos que a situação é absurda, mas beira o real.
No início do longa, vemos Regina (Debora Lamm) discutindo sobre as vantagens de realizar o sequestro enquanto sua amiga, Clívia (Fabíula Nascimento, de O Nome da Morte), nega a ideia e sonha com um casamento ainda não proposto. Do outro lado da cidade, Vladimir (Marcelo Valle) conclui mais uma entrevista mal sucedida. Ao sair do escritório, ele se depara com uma senhora oferecendo bolo para as pessoas na rua, exceto para ele. Vendo que ela está em uma situação pior que a sua – ela não possui um dos braços – sente-se invisível e insignificante, aumentando o seu desespero e o fazendo cogitar o sequestro.
Conseguimos traçar a personalidade das personagens nestas poucas cenas iniciais. Enquanto Regina é explosiva e imediatista, vemos em Clívia uma pessoa mais contida e delicada na fala e nas ações. Ambas atrizes fizeram um ótimo trabalho dando nuances às personagens, que destoam dos papéis com os quais estão acostumadas. Vladimir deseja ser respeitado e Primo quer ser uma pessoa dona de si própria.
A falta de esperança misturada com a baixa autoestima é a receita do desespero
A entrada de Primo (Silvio Guindane) traz uma leveza ao elenco. O trabalho do ator em tela, do primeiro ao último momento, é encantador. Primo é o personagem que mais sofre mudanças durante o seu percurso: um homem de quase 30 anos que mora com a mãe e não tem emprego, se vê, agora, parte de uma equipe que o “acolhe”. A vontade de se mostrar, a inveja crescente que sente de Vladimir – por ter uma vida melhor que a dele – o consome e a tensão do famigerado dia o fazem cometer algo que o mudará pelo resto de sua vida.
São quatro pessoas distintas que vivem à margem da sociedade, tanto econômica quanto geograficamente. Pessoas “invisíveis” como taxistas, lavadoras e babás, pessoas que possuem um “coração grande”, mas que, por conta de sua condição, são levadas ao extremo, estão cansadas de serem “ninguém” e da falta de esperança.
É mais que dinheiro, é a mudança de vida
Os diálogos de Como é Cruel Viver Assim mostram que são pessoas sem maldade no coração. Enquanto arquitetam o sequestro ou estudam os hábitos da vítima, conversam sobre os assuntos mais banais. Desde xampu de criança ao acidente automobilístico de 1994 que tirou a vida de Dener, jogador de futebol no Vasco, perguntando-se até se daria tempo de ver a árvore que o matou, criando desculpas para adiar a realização do sequestro.
É fácil entender o filme. Pessoas desesperadas e despreparadas querendo ser alguém em um mundo onde vale mais a pena ser bandido do que trabalhador. Ainda assim, se alguém não entendeu isso, a produção se encarregou de colocar vários avisos em forma de quadros e camisas com as metáforas da vida. Algo que pode ser visto como ironia ou como uma forma forçada de empurrar as metáforas ao espectador. Então, não se surpreenda se, na sala de espera, houver um quadro com os dizeres “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena” antes do sequestro ser cogitado ou escrito na camisa de Primo “Your Game, Your Rules“, diminuindo-o perante o mundo.
Cemitério de rico ou cemitério de pobre? As diferenças ainda existem após a morte
Na questão técnica, a fotografia tem imagens propositalmente granuladas quando ambientadas na periferia e uma imagem estática, limpa e bem posicionada nos locais mais nobres da cidade. Há um bom uso do som diegético que auxilia a narrativa e torna as cenas mais reais com o aproveitamento de carros de som e músicas, enquanto os personagens esperam por algo, evitando um silêncio não característico da periferia. Cenas que trazem referências de outros diretores são usadas de forma inteligente, seja com planos longos e conversas paralelas típicas de Tarantino, seja o uso de música que remete ao trabalho de Ennio Morricone, ou com uma disputa silenciosa de poder, típica de filmes de faroeste.
Júlia Rezende, diretora de Como É Cruel Viver Assim, é uma cineasta brasileira que merece ter o trabalho acompanhado de perto. Já dirigiu Meu Passado Me Condena e Ponte Aérea, mostrando que não tem medo de experimentar e se testar na direção. Procura inovar na forma de contar uma história, transformando seus filmes em algo original e não em uma tentativa forçada de criar um cinema brasileiro “raiz”, como estamos acostumados.
Como é Cruel Viver Assim pode não agradar ao espectador que esperar por uma comédia. O humor sombrio pode ser difícil de digerir para aqueles que não estão acostumados, mas vale a pena para ver o quanto o cinema nacional pode evoluir. Com um final bem didático, mesmo o espectador mais desatento não vai se perder e existe uma moral por trás das ações dos personagens. Enfim, um filme que vale pela sua ousadia em inovar no quesito humor, saindo do padrão Zorra Total ao qual estamos acostumados.