Longa sérvio aborda esquema de adoção ilegal pelo olhar de uma mãe em busca de seu filho
Mulheres que atravessam oceanos, abandonam trabalho e abdicam de paixões em busca dos filhos que desaparecem são bons personagens por natureza. Por mais errônea que seja a abordagem da maternidade de algumas produções, essa é uma premissa que, quando bem trabalhada, pode render tramas intensas. Cicatrizes (Savovi), longa dirigido por Miroslav Terzic, já havia chamado a atenção quando foi apresentado no Festival de Berlim, dentro da Mostra Panorama, e agora vem arrancando elogios do público da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Ana (Snezana Bogdanovic), a protagonista, é apresentada de forma discreta, porém intrigante, para o espectador. Logo percebemos que a costureira ocupa seus dias com algo que vai além do trabalho e da família. Apesar de uma boa relação com o marido e a filha mais velha, Ivana (Jovana Stojiljkovic), ela carrega uma dúvida há 18 anos. Ana acredita que seu filho, dado como morto no nascimento, não só está vivo como também teria sido vendido para um esquema de adoções ilegais. O que nos primeiros minutos de filme parecem uma estratégia de escape da realidade, vai se moldando como uma certeza materna, construída à partir de muita investigação pessoal e insistência em não deixar o caso ser esquecido, seja pela polícia local ou pela própria família de Ana.
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As revelações que surgem em Cicatrizes, sempre de forma orgânica e sem se apegar à clichês melodramáticos, prendem o espectador, mas logo nota-se que, mais importante que descobrir se houve ou não o roubo da criança, é perceber o amadurecimento da força da personagem principal. Inicialmente agressiva em sua busca por provas, ela se revela uma mulher bem-resolvida com o fato de não ter criado o filho que colocou no mundo, demonstrando não guardar mágoa do casal que assumiu essa função. É óbvio que estamos falando de um crime, mas Ana não parece querer recuperar o tempo perdido ou conquistar a confiança do garoto à qualquer custo. Ela deixa claro em seu olhar que não há como tornar-se mãe de um adolescente de 18 anos que sequer à conhece.
Atuações maiores que a história
Por mais inteligente que sejam os diálogos e construções narrativas, o que garante o equilíbrio do filme são as atuações. Bogdanovic imprime verdade tanto nos momentos de explosão, e eles são muito importantes para a história, quanto nos silêncios ensurdecedores de sua busca quase solitária por respostas. Mesmo marcada por uma perda, ela não usa do tal “instinto maternal” para se libertar de sua dor, mas de dados. Ela não “caça” seu filho perdido com uma leoa, mas usa sua perspicácia para revelar que sua insatisfação com a informação contida no atestado de óbito de seu bebê é duvidosa.
Paralelo a essa ótima construção de personagem feminina, temos Jovan (Marko Bacovic), marido de Ana. A estratégia de colocá-lo como um contraponto à insatisfação com as informações de Ana, com atitudes um tanto violentas e repressivas, faz a plateia sentir certa aversão. Mas logo Jovan encontra a mesma vibração da esposa e se mostra um companheiro inseparável e compreensivo. Não há “cura”, mas uma revelação de sua sensibilidade, algo que a direção de atores deixa claro ter sido bastante trabalhada com os atores.
Cicatrizes encerra com dados assustadores: em um ano, mais de 500 crianças desapareceram na Sérvia. Pode parecer um número até pequeno, se pensarmos que o Brasil vê sumirem cerca de 40 mil crianças todos os anos. Mas impactante de verdade é saber que, junto com esses pequenos, família inteiras se modificam, se entristecem e, algumas vezes, chegam ao fim. Cicatrizes apresenta uma delas, para que a gente não esqueça as tantas outras.