Baseado Em Fatos Reais é um filme de tensões inexploradas
Sob muitos aspectos, Baseado Em Fatos Reais (Based On A True Story) se encaixa perfeitamente na filmografia de Roman Polanski. Girando em torno do relacionamento ambíguo da protagonista (Emmanuelle Seigner) com uma mulher misteriosa (Eva Green, de O Lar Das Crianças Peculiares), o novo filme do diretor é um exercício de gênero e, assim como muitos outros de sua autoria, se passa em ambientes fechados, onde a claustrofobia se torna uma importante ferramenta cinematográfica e os personagens, ao enfrentarem situações psicologicamente desafiadoras, acabam revelando lados até então desconhecidos de suas respectivas personalidades.
No entanto, há um elemento que o faz se distinguir dos demais: a inexploração dramática. Adaptado pelo cineasta e por Olivier Assayas (o diretor de Personal Shopper) de um romance homônimo da escritora Delphine de Vigan, o roteiro é simples e parte de uma premissa extensivamente abordada em outros filmes (a obsessão de uma pessoa por outra). Isso pode, inclusive, transmitir a falsa sensação de que se trata de um longa óbvio em suas “surpresas” e repetitivo quando analisado sob a perspectiva geral da filmografia de Polanski.
Porém, toda a trama que se desenrola em primeiro plano parece ser somente a roupagem de um jogo cinematográfico e psicológico muito mais sutil. Nesse sentido, o cineasta de Baseado Em Fatos Reais é um contrabandista como nunca foi antes em sua carreira (o termo deve ser compreendido de acordo com a acepção oferecida por Martin Scorsese). A aparência é de um suspense comum, mas o interesse do diretor está noutro lugar. É uma intenção escondida, quase imperceptível, que, em sua semi-invisibilidade, dita o ritmo e dirige a narrativa, de tal maneira que inverte a construção inicial e aponta para uma direção inteiramente distinta.
Curiosamente, essa transformação ocorre quase que exclusivamente através da montagem, mais precisamente, através de cortes abruptos em momentos importantes. Quando parece que as duas mulheres se beijarão, somos imediatamente transportados para uma conversa. No instante em que a personagem de Eva Green explode emocionalmente, o impacto é quebrado por uma transição anti-climática. Na cena em que a protagonista entra num porão escuro, o suspense é acompanhado de um humor contrastante e de interrupções inoportunas. Nada se confirma. À exceção do clímax — que respeita as regras do gênero por uma questão de coesão temática –, tudo fica no campo das possibilidades inexploradas, das promessas que não se cumprem e do gozo interrompido.
Em suma, é um teatro de performances demarcadas, expressão artística tão cara a Polanski e que, aqui, foge das convenções ao inverter o drama e potencializá-lo em sua origem, não em seu fim, o que torna ainda mais fascinante a total despreocupação de levá-lo a cabo. Não há amor ou temores que se justifiquem. É possível dizer, aliás, que sob essa égide, é um filme de suspense por excelência — mesmo buscando subverter o gênero –, já que investe na construção do choque e nunca o quebra com a sua concretização efetiva. Não sabemos o que achar ou dizer sobre aquilo que estamos vendo.
Os sacrifícios da criação artística
Em si mesmas, essas subversões poderiam soar meros caprichos estilísticos. Mas diante das escolhas feitas por Polanski e Assayas, elas servem como um poderoso foreshadowing, indicando sutilmente a mudança futura que fará o filme deixar de ser tanto sobre luta de poder entre pessoas diferentes para também se transformar no retrato árduo e imaginativo da criação artística. A cena do carro é essencial para entender essa alteração, pois troca a percepção inicial pela constatação de que o artista também é um predador que adota um comportamento passivo-agressivo a fim testar os próprios limites.
Isso faz com que, inconscientemente ou de maneira deliberada, o drama deixe de se desdobrar completamente no campo físico e se torne uma espécie de ilustração mental, na qual os sacrifícios da criação — os quais podem custar barato ou caro — sejam o tema primordial trabalhado pelo realizador. Em outras palavras, é a obra de um artista olhando para o seu ofício, ao mesmo tempo que esconde essa reflexão atrás de elementos visuais comuns ao gênero. Contudo, ao negar a consumação do suspense, Polanski talvez tenha realizado o único suspense psicológico possível (na medida em que prolonga a apreensão por toda a narrativa). Só quem domina completamente a sua atividade profissional é capaz de atingir um objetivo pela negação de uma de suas partes.