Steve McQueen faz crítica sócio-moral no arrasador As Viúvas
O diretor Steve McQueen (de Shame) tem se consolidado como um dos expoentes do novo “cinema social” hollywoodiano. Na esteira das acusações de racismo e machismo que se instalaram na grande indústria cinematográfica dos EUA nos últimos anos, McQueen surge como um sopro de esperança, tanto para aqueles que se sentiam marginalizados, quanto para os grandes produtores que acharam um talentoso profissional para rechaçar o peso do segregacionismo que carregam, nem que seja simbolicamente.Após o impacto de 12 Anos de Escravidão, McQueen atualiza sua crítica ao modelo de organização do mundo atual com o sombrio As Viúvas (Widows), filme que, além da cuidadosa direção do britânico, conta com um elenco soberbo para retratar um mundo acossado pela corrupção por todos os lados.
Mais uma vez, a política é o pano de fundo para o naufrágio moral da sociedade contemporânea, cuja casca de respeitabilidade é frágil. Após a morte do até então bem sucedido criminoso Harry Rawlings (Liam Neeson, de O Passageiro) e seus comparsas em um assalto (e uma eletrizante cena de perseguição em primeira pessoa), sua esposa Veronica (Viola Davis, de Um Limite Entre Nós) se vê pressionada a pagar uma dívida deixada pelo marido. Ao saber dos planos de um novo roubo que o companheiro estava prestes a liderar, ela procura as viúvas dos demais membros da quadrilha para colocar a ideia em prática. Sem a experiência dos companheiros, organizar um assalto será um desafio para estas mulheres. Tudo isso acontece num cenário de disputa política, onde os dois principais concorrentes ao cargo de vereador por um violento bairro de Chicago têm interesse direto na situação.
Quase tudo em As Viúvas é carregado de significado. São duas tramas que se entrelaçam em uma relação simbiótica, mas que poderiam render histórias únicas e igualmente impactantes. De um lado, temos a angustiada Veronica, perdida entre a solidão do luto e violência do mundo de que até então se via protegida. Em paralelo, a disputa política de dois homens em diferentes posições de liderança: um rico e corrupto político tradicional e um líder comunitário aparentemente humilde, mas que em poucos minutos revela uma face perversa. Isso não é um spoiler. As Viúvas não é um filme maniqueísta, com divisão clara entre heróis e vilões. Todos os personagens possuem um lado sombrio.
Direção talentosa
McQueen abusa de seu talento para criar cenas memoráveis, começando pelas imagens de abertura, que mescla um momento de amor entre Veronica e Harry (uma cena que praticamente reproduz em detalhes uma outra presente nos momentos iniciais de 12 anos de Escravidão) com a extasiante perseguição pós-assalto. Há também um plano sequência onde o político Jack Mulligan (Collin Farrel) conversa dentro do carro enquanto percorre ruas miseráveis por onde faz sua campanha para vereador. Apenas por estes minutos, McQueen já mereceria um prêmio de direção.
A trilha sonora, assinada pelo onipresente Hans Zimmer, é um complemento digno para o clima sombrio e tempestuoso do longa. A fotografia explora o contraste entre o claro e o escuro, a luz e as trevas. Veronica, por exemplo, é sempre dominada pelo branco, cor predominante no apartamento em que vive, em suas roupas e até na simpática cadelinha Olivia, que cumpre um importante papel na composição emocional da personagem.
O roteiro foi baseado em uma série de mesmo nome que foi ao ar na televisão inglesa em 1984. Foi escrito pelo próprio Steve McQueen em parceria com Gillian Flynn, roteirista responsável por diversos trabalhos com protagonistas femininas, como Garota Exemplar. A violência é constante na trama, e incomoda mesmo quando não é explicita. A narrativa é tão fluída e dinâmica que mal é possível perceber o andar do tempo nas mais de duas horas de projeção.
A força das atrizes
Viola Davis está magistral. Sua Veronica é uma personagem complexa, essencialmente triste e que vivia dependente do marido e que precisa vencer sua pretensa fragilidade. Suas parceiras de cena não ficam atrás. Elizabeth Debicki (de Guardiões da Galáxia vol. 2), é responsável pelo quase nulo alívio cômico da história e Michelle Rodriguez surge como uma mãe fragilizada, mas que fará o que dor preciso para proteger os filhos. Destaque também para Cynthia Erivo no papel de uma sobrevivente do machismo e da violência.
Os personagens masculinos não ficam atrás. Daniel Kaluuya (de Corra!), se consagra como ator como um psicopata assustador, que amedronta a plateia apenas pelo olhar. A participação especial de Robert Duvall não é gratuita, fazendo jus ao talento desse astro do cinema. As Viúvas é um filme em que os coadjuvantes são quase tão envolventes quanto a protagonista, tornando o resultado muito mais forte.
A produção, no entanto, tem algumas falhas. Ao colocar mulheres inexperientes no mundo do crime para planejar um golpe arriscado, faltou à McQueen um pouco de sensibilidade com as personagens, fazendo o roteiro forçar a linha para justificar as decisões das protagonistas. Isso é até verbalizado em alguns momentos, como se o diretor já esperasse por esta crítica. Algumas soluções encontradas para certos problemas são oportunas demais e pouco verossímeis. Tomadas, provavelmente, pela necessidade de avançar para pontos mais importantes da história. Tal condição exigirá certa compreensão e boa vontade do público para se ter uma boa experiência. O filme também cria algumas oportunidades de humor que são desperdiçadas, sem que isso comprometa a mensagem crítica a qual se propõe. Um contraponto de leveza poderia tornar As Viúvas mais palatável para uma plateia mais heterogênea.
As mulheres de McQueen são fortes. Seu filme é também sobre corrupção, violência doméstica, machismo, racismo, manipulação religiosa e outros problemas do sonho norte-americano. É um filme de diretor, mas também de elenco. Uma obra essencialmente humana, característica que já se tornou marca do diretor e o que torna seus trabalhos muito mais que entretenimento, mas um manifesto do lado sombrio da atualidade.