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O Mundo é o Culpado – Ida Lupino eterna!

O Mundo é o Culpado continua um filme atual e necessário

Uma coisa da qual a tal nova geração não pode se queixar é de acesso aos clássicos. Esta que vos escreve é de um tempo onde filmes eram indicados por vizinhos ou pelo dono da locadora e não por youtubers. E, para conseguir assistí-los, era preciso torcer para que existisse uma cópia em VHS (posso sentar num café com quem quiser saber o que era essa maravilha) ou que ele fosse exibido na TV. Aberta, porque TV a cabo não era em todo lugar. Deixando os delírios desta velha colunista um pouco de lado, a questão é que hoje é possível assistir filmes com um simples apertar de botão. E a sugestão de hoje é que você exercite seus dedos sobre eles em busca de O Mundo é o Culpado, da diretora Ida Lupino.

Artigo O Mundo é o culpado

Antes de falar sobre a trama, vamos falar sobre sua condutora. Ida Lupino já tinha duas décadas de trajetória como atriz quando resolveu empreender junto com seu marido e fundar uma produtora de filmes independentes, a The Filmmakers. O objetivo era investir em produções de orçamento baixo e com temáticas sociais. Em 1950, um ano após montar sua produtora, Ida Lupino dirige e roteiriza O Mundo é o Culpado (Outrage). O tema central é o estupro, assunto presente desde os primórdios do cinema, mas sobre o qual Lupino optou por dar um outro olhar. De elemento dramático para causar reviravoltas no roteiro, o pior dos pesadelos femininos permeia toda a história através das cicatrizes que deixa na protagonista Ann, interpretada por Mala Powers.

Mais que tratar de um tema – infelizmente, controverso até os dias de hoje – O Mundo é o Culpado ainda nos presenteia com uma verdadeira aula de cinema, provando que Ida Lupino não merece apenas ser citada por ser uma mulher num mundo ainda tão masculino, mas por ser uma das mais talentosas da sua profissão. Já nos créditos iniciais, tensos como poucos exemplares atuais que se dizem de suspense, ela demonstra que sabe conquistar o espectador e respeita sua inteligência até a última cena. A imagem de uma mulher correndo sozinha por uma rua escura já nos prende na cadeira. Mas calma, o bom trabalho de Ida Lupino está só começando.

Assédio e julgamento

Somos apresentados a protagonista em uma situação, à primeira vista, um tanto banal. Ela compra um bolo em um carrinho que vende lanches em frente ao seu trabalho. O vendedor deixa claro seu interesse em Ann, mas ela sequer lhe responde para, na cena seguinte, descobrirmos que ela tem um ritual de almoçar junto com o namorado, Jim (Robert Clarke). A abordagem do vendedor, nada discreta, parece um artifício para preparar o público para o próximo momento do filme.

É algo tão rápido, seguido por um diálogo de romance, que é possível que o público da época pensasse estar diante de um exemplar água com açúcar sobre uma moça envolta nos preparativos de seu casamento. Alguns minutos depois e a “armadilha” de Lupino se desfaz. Percebemos que a cantada do vendedor de doces não era apenas uma gracinha inocente, e a descoberta do envolvimento de Ann com outro homem revela os reais interesses do rapaz. Por conhecer a rotina da moça, ele a segue após sua saída do escritório, já tarde da noite. A fuga de Ann é uma das cenas mais bem executadas da carreira de Lupino, que não se contenta em apenas seguir a cartilha das sombras do cinema noir, mas imprime sua assinatura de apaixonada pelas imagens.

Artigo O Mundo é o culpado

Não espere narração em off ou explicações colocadas na boca dos personagens. Ida Lupino é uma mulher de cinema e é por meio do visual que conta suas histórias. Sem esquecer, é claro, do sonoro. São os sons desta cena decisiva para O Mundo é o Culpado que criam a atmosfera angustiante da proximidade do ataque à Ann. Assobios, passos, objetos derrubados…até ela buscar socorro em um carro e a buzina disparar. Assim como o coração de Ann e o nosso. É a trilha para a câmera se afastar e o pior acontecer. Lupino não mostra o estupro não apenas por elegância cênica (cenas de estupro explícitas parecem sempre uma desculpa para o choque barato que encobre falta de talento), mas porque todos entendemos o que aconteceu naquele momento. Inclusive o homem que fecha sua janela para não ouvir o grito de Ann perturbar seu sono.

Antes do ocorrido, o filme nos informa com sutileza como foi a criação de Ann numa típica família de classe média dos anos 50. O pai, professor com fama de linha dura, mas carinhoso com a esposa e a filha, era sua principal referência masculina, que é reforçada por Jim, que não mede esforços para conseguir um emprego melhor e iniciar a construção de uma família com Ann. Com a ideia de que todos os homens são bons destruída de forma abrupta, nossa protagonista passa a ter o medo como companheiro. Não quer mais saber de casamento e não consegue mais ter um convívio social saudável. A cabeceira de sua cama, em formato de grades, emoldurando sua conversa com a investigadora que tenta, sem o mínimo de sensibilidade, obter informações sobre o agressor, é o anúncio do próximo capítulo da vida de Ann: ela está em uma prisão.

Sem esquecer da crítica social, Ida Lupino mostra os preconceitos da sociedade para com uma vítima de estupro em um plano-sequência simples em sua forma, mas nada simplório em seu conteúdo. No caminho para o retorno ao trabalho, Ann percebe olhares e cochichos a cada passo que dá. Não sabemos o que as pessoas dizem, mas Lupino sabe que nossa imaginação e conhecimento da maldade humana é bastante fértil. Ao invés de acolhimento, Ann encontra críticas veladas. Não teria ela parte da culpa pelo que aconteceu? Culpabilizar a vítima. Assunto atual, não? Desde 1950!

Artigo O Mundo é o culpado

Expressionista noir

Apesar de ser encaixado em listas sobre cinema noir, O Mundo é o Culpado tem doses bem generosas de cinema de horror. Não o dos monstros da Universal, mas aquele discreto e, por isso mesmo, intenso medo instaurado por clássicos como Sangue de Pantera, de Jacques Tourneur e Os Inocentes, de Jack Clayton. É inegável o flerte do filme com o cinema expressionista. Os closes nas mãos, os pequenos gestos que dizem o que atordoa a alma de cada personagem, e a transformação de Ann de mulher alegre e falante em alguém quase alheio a convivência social aparece de forma semelhante às transformações dos monstros nos filmes de terror.

O figurino, em especial, vai sofrendo mutações (olha o monstro aí!) para expressar a infantilização da protagonista. Os penteados modernos e os conjuntos que realçam as formas de Ann dão lugar a vestidos de mangas bufantes e trancinhas nos cabelos. Apavorada com a simples ideia de se aproximar dos homens, ela tenta afastá-los negando sua feminilidade. Paga pelo crime do qual foi vítima indo contra seus próprios desejos. E Ida Lupino não esconde que há sim desejo no corpo de Ann. O reverendo Bruce Ferguson (Tod Andrews), que a salva durante sua fuga da casa dos pais, surge na trama como o tal homem bom que Ann acredita que não mais exista. Seu interesse por ele fica claro em cada olhar, mas o trauma do estupro faz com que ela se afaste ao mínimo sinal de retribuição do sentimento.

Fechar uma história como a de O Mundo é o Culpado com uma redenção seria um caminho fácil, mas Ida Lupino opta por desafiar Ann a encarar seus medos de frente. Sua retorno para a casa dos pais, que não é mostrado, provavelmente será uma experiência pesada. Mas Ida Lupino gosta de deixar no ar a ideia de que, tão importante quando a punição para o estuprador, está a atenção para a vítima e a possibilidade de subverter a situação e seguir em frente com dignidade. Ann afastou-se de sua essência, mas seu sofrimento nunca foi o centro da atenção da câmera. Pelo menos não de maneira explícita, buscando a todo custo suas lágrimas. Aliás, lágrimas contidas, pois até chorar não parece permitido para Ann, julgada pelos outros e por si mesma. Desde a fatídica noite, não é só do beco escuro que ela tem medo. O monstro mora dentro dela e expõe sua força quando ela menos espera. Se isto não é um filme de terror, não sei dizer o que é. Ida Lupino sabe fazer o que de melhor o cinema de gênero oferece: tocar em assuntos delicados por meio de histórias aparentemente simples.

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