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Inimigos Pelo Destino – William Shakespeare na visão de Abel Ferrara!

Abel Ferrara e sua versão de umas das peças mais famosas de William Shakespeare

William Shakespeare é o mais brilhante de todos os dramaturgos da História. Sob as mais diversas perspectivas, o autor é responsável por dar uma nova perspectiva às artes dramáticas e suas múltiplas possibilidades. Sua obra vai muito além da palavra. Shakespeare explora gêneros, linguagens e, acima de tudo, mergulhou nos infindáveis mistérios da alma humana. Por que escrevo no presente? Além disso, qual a proximidade entre o Bardo e um cineasta tão idiossincrático quanto Abel Ferrara? Bem, uma coisa de cada vez.

Sobre o primeiro questionamento, Shakespeare simplesmente é.

Shakespeare como inspiração para China Girl, de Abel Ferrara

Shakespeare mantém sua presença nas artes, inspirando artistas e obras diversas.

O autor ainda é objeto de discussão e inspiração para novas obras. Não seria exagero dizer que Shakespeare está em tudo que existe. São diversas as montagens de suas peças ainda em texto original, outras tantas releituras que buscam dar nova ótica ao mestre*. É um arcabouço conceitual que sobreviveu ao devastador efeito do tempo e, provavelmente, assim continuará a fazê-lo.

*(Confira a resenha de uma adaptação de Hamlet em HQ e as críticas dos filmes Macbeth e Lady Macbeth).

Dentre incontáveis revisitações aos textos clássicos do bardo, em especial aqueles que dizem respeito ao adorável Romeu e Julieta, um trabalho em especial me encanta profundamente. Inimigos Pelo Destino (China Girl), de 1987. Dirigido por Abel Ferrara, cineasta norte-americano responsável pela execução do esplendoroso Vício Frenético (Bad Lieutenant, 1992), entre outros grandes filmes. Violento e abusado, o cinema de Ferrara é provocante, rebelde e fatal, resultando em retratos fieis (mas artisticamente poderosos) de nossa sociedade infectada por doenças.

Doenças que Shakespeare também tratou.

Importante que se diga que Shakespeare não inventou Romeu e Julieta. Sua peça foi baseada em versos intitulados The Tragical History of Romeo and Juliet, escritos por Arthur Brooke em 1562, e também em uma versão em prosa da história escrita por William Painter em 1567. Entretanto, foi através do bardo que o alcance desta narrativa foi incalculável e elevado ao status de obra-prima. Novos personagens foram criados e o inconfundível estilo e ritmo shakespeariano tomaram forma.

Vamos refletir um pouco mais sobre Romeu e Julieta.

Dois jovens se apaixonam, mas descobrem que são filhos de famílias rivais de Verona (Capuletos e Montéquios) e que seu amor é uma sentença de morte. Um tema magnífico em sua obviedade. Os “diferentes” que se odeiam permanecem sendo pauta de discussão em nossa sociedade. Mas sobre o que mais Romeu e Julieta trata?

Trata-se de um romance, sim. Entretanto, algo extremamente comum na obra de Shakespeare, está presente também aqui: a violência. Extrema violência. Romeu e Julieta é a narrativa sobre dois jovens que vivenciam um amor perfeito demais para sobreviver a uma sociedade hostil. Ambos se suicidam. Mas isso não é o bastante. Além da morte do casal principal, outras quatro personagens morrem, boa parte vítima de assassinatos.

Senhoras e Senhores, Romeu e Julieta é uma história sobre o amor mais puro em uma comunidade regada extrema violência. Não é sensível como parece ser. Trata-se de uma narrativa, por vezes, dolorosa e angustiante. Absolutamente trágica.

China Girl e a versão de Abel Ferrara para Romeu e Julieta, de Shakespeare

Algo que soa como Abel Ferrara.

Ferrara é um grande mestre da forma, um verdadeiro poeta das imagens. Seu cinema é puramente gráfico, provocando a platéia violentamente através de cenas intensas, iluminada por cores fortes, trilhas sonoras enervantes e uma exploração constante de uma linguagem própria. Ferrara é belo e podre (como sugeriam as bruxas de Macbeth), violento e sedutor.

Um cineasta que desenvolve como poucos o significado de Shakespeare.

Em Inimigos Pelo Destino, cenas clássicas da icônica peça são revisitadas em versões atualizadas para o século XX. Ao invés de famílias rivais, a trama é composta pelo conflito entre chineses e italianos na America dos anos 80. Ao invés do casal se conhecer em um baile de máscaras, encontram-se em uma balada frenética e ensurdecedora. E a famosa cena do balcão acontece na janela dos fundos de um prédio num bairro não muito charmoso. Entre cenas diversas que evocam o espírito de Romeu e Julieta, o espaço dos eloquentes solilóquios de Shakespeare é substituído por puro deleite visual. Trata-se de Abel Ferrara fazendo cinema da melhor qualidade.

Naturalmente, o trágico final de Romeu e Julieta está presente aqui também. O casal é morto pelo mesmo veneno, que não se trata de um líquido fatal, mas de um veneno presente em boa parte de nossa sociedade. Feito de pólvora e ódio. Uma única bala fatal, suficiente para destruir toda a pureza do amor inocente.

Ferrara adequa a poesia do teatro shakespeariano ao nojento mundo moderno.

Um filme que se compromete a manter o espírito do bardo em plena vitalidade.

Cinema de primeira.

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