Eu Não Sou Um Homem Fácil presta um desserviço no debate sobre feminismo
Perdi a conta de quantas vezes fui questionada sobre Eu Não Sou um Homem Fácil, filme da plataforma Netflix dirigido por Eléonore Pourriat. Também pudera, já que não é de hoje que me intitulo feminista e não canso de procurar autoras que trabalham em cima desta teoria. A produção tem a seguinte proposta: apresentar uma realidade onde as mulheres ocupam postos de poder e aos homens cabem os cuidados dos filhos, os afazeres domésticos e empregos com salários bem menores e poucas regalias. Parece um roteiro revolucionário para quem caiu no movimento feminista ontem, mas a pioneira do cinema de ficção Alice Guy-Blaché, realizou em 1906, o curta-metragem The Consequences of Feminism, que tem exatamente a mesma premissa do filme de Pourriat. E tanto ela como Guy-Blaché cometeram o mesmo erro: confundiram feminismo com femismo.
Damien, o protagonista, é um típico conquistador machista que tem como emprego criar aplicativos engraçadinhos para outros conquistadores machistas. Esta definição não está na sinopse oficial, mas é perceptível nas primeiras cenas do longa. Um belo dia, durante o lançamento do livro de seu melhor amigo, Christophe, Damien conhece a secretária Alexandra, se sente atraído, toma um fora e parte para outra. No caminho da livraria até sua próxima “vítima”, ele bate a cabeça em um poste e acorda num mundo onde são os homens que escutam cantadas baratas na rua, se depilam por uma imposição social e não por escolha, e precisam abandonar seus empregos para cuidar dos filhos. Ah, e são dóceis e românticos. Já as mulheres vestem ternos, andam sem blusa por aí, pouco se importam com o prazer masculino e oprimem como podem os homens à sua volta.
É certeiro que essa troca causará situações hilárias e o objetivo primordial do longa é ser uma comédia. Mas depois de cair na gargalhada vendo um homem ser dispensado por não depilar o peito, é inevitável que bata uma tristeza: Eu Não Sou Um Homem Fácil coloca TODOS os homens e TODAS as mulheres no mesmo balaio. Estereótipos aos montes. O roteiro acredita que, se fôssemos nós que ocupássemos a maioria do poder, seja na política ou na ciência, seríamos tão opressoras quando os homens. Femismo: ideologia que prega a superioridade do gênero feminino sobre o masculino. Está no dicionário.
Boas ideias perdidas entre estereótipos
Pourriat e Guy-Blaché valeram-se da ideia de um mundo invertido no pior dos sentidos e ambas registraram os medos que cercam os machistas de ontem e de hoje, que é o de terem sua fragilidade exposta caso as mulheres “roubem” seus lugares. Mal sabem que são tão vítimas do machismo quanto qualquer mulher. Do mesmo modo que crescemos ouvindo que certas atitudes “não são coisas de mocinha”, milhares de meninos engolem o choro porque homem que é homem não derrama uma lágrima. Meninas oprimem meninas. Ser mulher não é garantia de não ser machista. O oprimido, muitas vezes, acolhe as afirmações do opressor por medo. Para encará-las como verdade absoluta é um pulo.
A diferença é que Guy-Blaché vivia uma realidade onde o feminismo ainda estava no subterrâneo, com mulheres sendo presas ou internadas em sanatórios por lutarem pelo direito de ir e vir, de saírem de um casamento infeliz, de dizerem não. Pourriat está em um outro tempo, e talvez seu filme tivesse um humor mais refinado se, ao invés de trocar o gênero da opressão, o mundo pós-batida de cabeça de Damien fosse de igualdade, que é o que o feminismo prega nas suas mais diversas vertentes.
Se o medo da piada não engrenar dominar a situação, lembremo-nos que não há coisa mais engraçada do que ver homens machistas (e não qualquer homem!) escutando as palavras de teóricas como Audre Lorde, Angela Davis, Carole Pateman, Carol Gilliam, Susan M. Okin e Nancy Fraser. Ah, isso sem falar na querida Simone de Beauvoir. Mas essa eles pensam que é apenas a eterna amante do Sartre. Que meninos inocentes!
Talvez eu esteja a sete palmos quando esta confusão entre femismo e feminismo for resolvida. Talvez as coisas nunca mudem. O que não pode é deixar a água parada. É preciso discutir, ouvir outras opiniões, chamar os homens para o diálogo, ser provocativa. Não no sentido da piadinha de mau-gosto, mas de contestar o que é tido como “normal”. É incomodar quem está confortável no seu mundo, e não repara o caos e as dores que o rodeiam. Não somos melhores que os homens. O machismo também os atinge. Mulheres jamais vão mudar o mundo se oprimirem outras mulheres. Só juntos seremos a revolução. Por mais que filmes como Eu Não Sou Um Homem Fácil tentem esconder isso de nós.