Até um passado recente, os filmes de artes marciais eram vistos como algo menor deste lado do globo, o que é até compreensível pela grande quantidade de produções a toque de caixa no mundo inteiro. Mesmo assim, qualquer verdade dita absoluta enfrenta, em algum momento, uma ou mais exceções fortes demais para se ignorar. Na década passada, o ocidente teve que admitir que algo de seu senso comum sobre cinema precisava ser revisto, e isso aconteceu graças a O Tigre e o Dragão, de Ang Lee, Herói e O Clã das Adagas Voadoras, ambos de Zhang Yimou. O francês O Pacto dos Lobos, mesmo não sendo exatamente deste universo, se utilizou dele de uma forma que é difícil não associa-lo também ao gênero. Todos esses exemplos mostraram que era possível fazer cinema de qualidade, envolvendo lutas com coreografias muito elaboradas e a filosofia atrelada à prática da arte.
Por tudo isso, O Grande Mestre, de Wong Kar Wai, já tinha o caminho de sua carreira internacional pavimentado. Mais realista que os outros filmes citados, o drama épico e biográfico de artes marciais, sobre a vida do lendário Ip Man – vivido por Tony Leung – mais conhecido como o primeiro professor de Bruce Lee, já nos mostra o personagem principal aos quarenta anos. Nascido em 1893 em uma família abastada, o mesmo narra a história e deixa claro que viveu sem preocupações até então. Em meio à rivalidade entre o povo chinês do Sul e do Norte, o patriarca da influente família nortista Gong anuncia um sucessor, afirmando que o intercâmbio dos estilos de Kung Fu de ambos os territórios era o seu sonho. É marcada então uma luta entre representantes dos dois lados, e Ip Man, com seu estilo Wing Chun, considerado inferior, é o escolhido do sul pela sua reputação impecável.
Pode parecer algo muito previsível, do tipo “Ip Man treina, passa dificuldades e filosofa durante o filme inteiro para triunfar na emocionante luta final “ mas não poderia estar mais longe disso. Na verdade, é uma espécie de subversão da fórmula, pois em grande parte da narrativa, a história do protagonista fica totalmente de lado e o filme se ocupa de outros personagens, envolvidos diretamente, ou não, com ele. Mesmo a disputa entre Norte e Sul acontece de uma forma bem inusitada. Por esses pontos, pode frustrar aqueles que assistirem ao filme procurando saber mais sobre o biografado, que já foi também retratado em dois outros filmes – Yip Man 1 e 2* – com Donnie Yen no papel principal. Dentro dos desvios da história, acompanhamos uma tragédia dentro da família Gong, e a busca pela recuperação da honra empreendida pela única herdeira. A personagem, interpretada por Zhang Ziyi, é a mais interessante do filme, ofuscando bastante todos os outros, e ainda traz mais um desdobramento para esta já fragmentada história.
* Yip Man e sua continuação foram lançados direto em DVD no Brasil, também com o título “O Grande Mestre” e “O Grande Mestre 2”. Ambas a grafias do nome do personagem utilizadas neste texto são aceitas no alfabeto ocidental.
Um ponto bastante delicado em cinebiografias é impor uma cadência narrativa frente à necessidade de incluir determinados episódios da vida de alguém. Não raro, muitas delas caem em um didatismo incompatível a uma boa dramatização. Infelizmente, aqui não foi diferente. Além da curiosa opção de seguir outros personagens, algo que já limita o andamento, o desenvolvimento da trama é prejudicado por informações escritas na tela, como o ano em que determinado evento aconteceu. É um recurso que enfraquece o arco dramático de Ip Man, que com a invasão japonesa perde tudo e sustenta sua família com muita dificuldade.
O Grande Mestre tem uma beleza plástica inquestionável. Apesar de trabalhar com uma paleta escura e quase todos os personagens vestirem preto, algo que atua como complemento dramático, isso não tornou as imagens menos impactantes ou belas. A fotografia cumpre muito bem sua tarefa com as cenas em câmera lenta, intercalando os planos dos atores com detalhes como gotas de chuva. A coreografia é de Yuen Woo Ping, referência no assunto e responsável pelas lutas em Matrix e Kill Bill, ficando apenas nos mais famosos fora do mercado chinês. Entregando belos combates e utilizando menos o recurso de atores ou dublês suspensos por cabos, já que a história é mais realista, a única ressalva sobre este aspecto do filme é que fica perceptível em alguns momentos que a câmera foi acelerada, algo que se houve em outros filmes em que ele tenha elaborado as sequências, foi muito bem disfarçado. Fica então difícil apontar isso como falha da coreografia ou da fotografia.
Apesar de truncado e de desprezar um pouco sua razão de ser, o filme de Wong Kar Wai consegue ser eloquente e lírico dentro do seu gênero. Vai levantar muitas dúvidas quanto aos motivos do diretor, mas também vai encantar por seus méritos. Os cinéfilos mais dedicados perceberão uma referência direta a um grande filme da década de 1980, portanto mantenha-se atento. Também há uma interessante cena pós-créditos. Aguarde!