Durante a segunda metade da jornada de Joe – a atormentada personagem-título interpretada por Charlotte Gainsbourg – é bastante animador perceber que a natureza da história acaba mostrando-se diferente daquela que poderia imaginar-se no primeiro filme. Não se trata de acontecer alguma reviravolta vazia, que acaba surpreendendo e agradando apenas ao espectador menos dotado intelectualmente, ou que as duas partes sejam radicalmente diferentes. Considerando tudo como uma coisa só, fica claro que não houve incoerência e que o discurso e a postura de Lars Von Trier são evidentes.
Continuando seu relato a Seligman (Stellan Skarsgård), Joe terminou o Vol. 1 deixando uma impressão vaga no público. Houve quem acusasse o filme de misógino, um ponto de vista válido dependendo da perspectiva, mas talvez essa visão tenha afastado algumas pessoas da continuação. Ao prosseguir, a partir da perda da sensibilidade sexual da protagonista, o Vol. 2 começa voltando à sexualidade pré-adolescente dela, iniciando comparações, provavelmente, incômodas para uma boa parte da plateia. A relação entre a Igreja Ortodoxa e a Romana inicia uma discussão sobre prazer e culpa, e esse questionamento é o caminho principal que a narrativa percorre. Seguindo a dinâmica estabelecida no primeiro filme, Seligman permanece como ouvinte e interlocutor de Joe, fazendo questão de evidenciar as metáforas que o filme propõe, assim como às vezes incorporar algumas reações do público, quando o relato toma ares mais absurdos. A diferença aqui é que a personagem principal vai se impondo nos argumentos, assumindo uma postura retórica mais ativa e assim atravessa as camadas do seu compassivo companheiro de cena.
A radicalização da busca por prazer era algo esperado desde o início, e ela nos leva aos extremos do desespero da personagem. As cenas em que ela se entrega ao fetiche da dor são algumas das mais fortes entre os dois filmes, e estão profundamente ligadas às alusões religiosas. Von Trier faz com que essas sequências tenham mais peso, utilizando movimentos de câmera próximos ao documentário, valorizando a fotografia, sempre impecável. Embora todo o conjunto seja digno de nota, aqui o texto parece realmente destacar-se no sentido de provocar a reflexão no público, mas essa provocação não aparece gratuita e merece total atenção. O diretor lança mão de mais uma série de questões que certamente chegam a ser incômodas, principalmente por tocarem em assuntos que vão muito além da satisfação sexual, como o senso comum da sociedade sobre certos indivíduos e a imposição do uso de certos termos, pelo que chamamos hoje em dia de “politicamente correto”.
Brincando sempre com a expectativa do público, esta segunda parte consegue manter-se interessante, também, graças ao desenlace inesperado de algumas situações. Quem conhecer os outros filmes de Lars Von Trier, perceberá uma jogada bastante irônica do diretor, que parece divertir-se com a ideia de auto-referência. O último ato de Ninfomaníaca, ao finalmente chegar naquela situação em que Joe encontrava-se no início do Vol. 1, peca apenas ao criar mais um novo evento inesperado e decisivo, introduzindo um elemento na situação que não conseguiu ser tão natural quanto os outros. Fora isso, só posso falar por mim quando afirmo que a finalização da história foi previsível. Se isso é um ponto negativo ou não, é a percepção de cada pessoa que conta, mas acredito que independente disso, a ironia, que chega a provocar risos nervosos em certos momentos, manteve-se ali por toda a projeção, e isso é muito mais importante do que um final com revelações bombásticas.
Ninfomaníaca Vol. 2 conecta-se perfeitamente com sua primeira parte, revelando o mosaico completo da obra e entregando algo mais do que parecia ser a proposta original. Digam o que quiserem sobre Lars Von Trier, que odiaram seu filme, que ele só faz exploração gratuita, que se sentiram ofendidos, etc. Mas lembrem-se sempre que ele é um cineasta comprometido com uma visão e provou isso mais uma vez. Se a maioria do público concorda ou não, é outra história, e de postura frouxa o mundo do cinema está lotado. Ainda arrisco dizer que muitas mulheres que ignoraram a história de Joe e seu vício em sexo, julgando tratar-se de mais uma banalização insensível do feminino, poderiam até aplaudir a coragem de Von Trier no final.