Robert E. Howard levou os Mitos de Cthulhu à Britânia ocupada pelos Romanos
Esse é um bom momento para qualquer fã de Fantasia no Brasil, mais especificamente para aqueles que curtem o subgênero espada & feitiçaria. O criador do estilo, Robert E. Howard (1906-1936), nunca esteve tão presente em nosso mercado editorial, de uma forma ou de outra. Conan tem edições em catálogo (confira também um artigo sobre as HQ’s do bárbaro), Solomon Kane ganhou um volume único e até as obras mais obscuras têm espaço, como A Sombra do Abutre. Falando em obras menos conhecidas, nosso assunto de hoje é um caso que deve interessar também aos fãs de H. P. Lovecraft, já que tem uma relação mais estreita com os Mitos de Cthulhu.
A relação entre Lovecraft e Howard, correspondentes regulares, é bem conhecida. O que chama atenção em Vermes da Terra (Worms of The Earth) são as citações diretas às criações do influente autor de horror cósmico. É um típico conto howardiano, mas com um toque muito mais sombrio e puxado para o terror, apresentando para nosso público Bran Mak Morn, rei dos Pictos.
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É bom já avisar aos que se interessaram por essa obra. Vermes da Terra não tem edição impressa à venda pelo link acima. Mesmo quem não possui o leitor de Ebooks, se tiver interesse, pode usufruir do aplicativo em seu smartphone ou tablet. O conto não é muito longo e o valor cobrado está de bom tamanho. A iniciativa é de Alex Magnos, que se encarregou da tradução e edição. Aliás, é apenas no site de sua editora, a Red Dragon Publisher, que você pode comprar uma versão impressa.
Mak Morn vive em um contexto com pano de fundo histórico, apesar do sobrenatural presente. É quase um meio termo entre a era Hiboriana de Conan e a ficção histórica de A Sombra do Abutre. Ainda assim, os Pictos fazem parte do universo do bárbaro cimério. Meio confuso, então cabe agora um rápido esclarecimento sobre esse povo.
Os Pictos e a vida real
Historicamente, os Pictos eram uma tribo que habitava a região que se tornaria a Escócia, lutando contra a dominação romana na Britânia. Aliás, a união dos Pictos com os Escotos, vindos da região da Irlanda, contras as invasões Nórdicas entre os séculos VIII e IX, teria unificado o reino e dado origem ao país.
Ainda sem um consenso sobre esse povo, existem historiadores que afirmam que eles seriam uma tribo Celta, com outros defendendo a ideia de que seriam mais antigos. De qualquer forma, os escritos romanos os distinguem dos Celtas da Escócia, em relatos que os descrevem como pequenos, ainda que robustos, e de pele amarelada.
Sobre a própria definição “Pictos”, o termo deriva do latim “picti”, que significa algo como “pintados”. Evidentemente, esse registro faz referência às pinturas de guerra da tribo, o que significa que não se sabe como os Pictos se auto denominavam. Essa aura misteriosa, mais a ferocidade e selvageria pelas quais são conhecidos, deram combustível à imaginação de Howard.
Os Pictos da Era Hiboriana
Voltemos ao terreno da fantasia. No mundo criado por Robert E. Howard, esses selvagens são Inimigos mortais dos Cimérios, que descendem dos Atlantes. Isso nos leva a outro personagem da galeria howardiana: Kull da Atlântida, situado cronologicamente bem antes de Conan, cujo povo tinha os Pictos como aliados próximos. A explicação é que o grande cataclisma que varreu a era do rei Kull também fez com que os Pictos regredissem de uma cultura melhor organizada a um barbarismo bastante bruto.
Ainda sobre o Rei Kull, o conto que trouxe Bran Mak Morn ao mundo, Kings of the Night, tem uma particularidade que vale a pena citar. Ali, o rei Picto é descrito como um descendente direto de Brule, o Assassino da Lança, personagem que acompanhava o monarca atlante. Agora chegamos finalmente ao que interessa…
Bran Mak Morn em Vermes da Terra
Como qualquer soberano que vê seu povo sofrer nas mãos de conquistadores, Bran Mak Morn odeia os Romanos, comandados naquela província pelo governador Tito Sulla. O motivo é compreensível. Por conta de uma confusão no mercado local, um picto é punido por desacato da forma mais eficiente que as legiões romanas conheciam. A crucificação, inclusive, é feita na presença de Mak Morn, contendo o ímpeto furioso de vingança.
Não há uma indicação clara sobre a época na qual o conto se passa, mas a presença romana já estabelecida na região, mais a menção à Muralha de Adriano, nos fazem concluir que deve ser por volta do século III. É neste cenário que o rei procurará a compensação pela afronta, mas que ninguém espere um libertador romântico à la William Wallace. O motivo é simples. Bran Mak Morn quer mesmo é vingança, não importando os riscos aos quais vai submeter os outros e a si mesmo no processo.
Pouco heroico? Eu diria “nada heroico”. Vermes da Terra foi publicado originalmente em 1932, na revista Weird Tales, e nos mostra um protagonista completamente focado em punir Tito Sulla pelo seu orgulho ferido. O plano envolve um pacto com os tais seres que dão título ao conto, criaturas sobrenaturais malignas banidas para as profundezas pelos seus próprios antepassados. As referências aos conceitos lovecraftianos são nominais e diretas, como Dagon e R’lyeh. O próprio Lovecraft incluiu o nome Bran no conto Sussurros na Escuridão (The Whisperer in Darkness), representando uma deidade pagã, como uma homenagem ao amigo.
As doses de violência que esperamos do autor estão presentes, mas o clima aqui é um tanto diferente e tão interessante quanto seus outros trabalhos. Com um tom pessimista, o próprio leitor já se pega imaginando que o projeto do personagem principal não é uma ideia tão boa. Esse clima fatalista é ajudado pelo conhecimento histórico, afinal, qualquer um sabe que o destino dessas tribos é a assimilação pelas culturas conquistadoras. Esse peso é um atrativo a mais na escrita dinâmica de Howard, que traz ainda conteúdo para reflexão sobre os arquétipos de barbarismo e civilização.
Vermes da Terra também foi adaptado aos quadrinhos, com roteiros de Roy Thomas e arte de Tim Conrad e Barry Windsor-Smith (quando ainda assinava sem o “Windsor”). A história saiu em duas partes, em Savage Sword of Conan #16 e #17 – entre 1976 e 77). No Brasil, apareceu em A Espada Selvagem de Conan #27 e 28, em 1987.
Sobre a edição nacional
Embora seja um trabalho de divulgação louvável realizado por Alex Magnos, com uma tradução que dá conta do texto de Howard, a avaliação final é prejudicada pela ausência de revisão. Pelo preço módico da edição, não é motivo para que você deixe de baixa-la, mas a experiência é sensivelmente comprometida por esse detalhe.
Uma pena, mas é justamente quando nos aproximamos do desfecho da história que aparecem os erros mais gritantes. Não houve atenção nem mesmo quanto à grafia do nome do governador romano, que começa como “Tito” e depois se torna “Titus”. Eis um problema comum às iniciativas como essa, mas seria melhor que os responsáveis preparassem melhor seu material antes de lança-lo.
Todavia, Vermes da Terra é altamente indicado para quem procura um protagonista fora do padrão. Certamente, também foi uma das influências de Michael Moorcock para criar seu Elric de Melniboné, também completamente fora do heroísmo romântico que caracteriza aventuras literárias.
Só não espere simpatizar tanto com o último rei dos Pictos!