Em sua terceira temporada, True Detective traz muito conteúdo para discussão
Depois de uma brilhante primeira temporada em 2014, True Detective padeceu de seu próprio sucesso na correria de entregar uma nova trama no ano seguinte. A HBO, então, amargou um fracasso e aprendeu a lição, tanto que o criador e showrunner, Nic Pizzolatto, teve quatro anos para preparar uma terceira rodada de oito episódios, ignorando o fiasco anterior e resgatando a estrutura original que tanto havia agradado crítica e público.
Este texto não vai passear por detalhes de bastidores ou comentar o brilhantismo técnico da terceira temporada de TD. Tampouco a atuação nada menos que impecável e inesquecível de Mahershala Ali, vivendo o protagonista Wayne Hays. O objetivo aqui é aprofundar a discussão com detalhes mais complexos, que até podem ser ignorados pela grande maioria do público, mas conferem mais densidade conceitual e proporcionam uma perspectiva mais rica e ambígua. Claro que essa é apenas uma interpretação possível, mas ela será devidamente fundamentada.
Por isso, partimos do pressuposto que você já tenha assistido aos oito episódios que formam essa temporada. Sem perder tempo com sinopses, vamos direto ao ponto e avisamos que os SPOILERS estão presentes por todo o texto. Faça um favor a si mesmo e não leia nada a seguir antes de conferir a ótima terceira temporada de True Detective.
Ainda aqui? Vamos em frente…
Mais um lembrete: SPOILERS À FRENTE!
As influências de Nic Pizzolatto e como elas afetam seu universo ficcional
O criador e showrunner de TD nunca escondeu sua admiração pelos quadrinhos e o peso que os grandes nomes da Invasão Britânica tiveram em sua formação. Um nome em especial precisa ser citado: Alan Moore. Não apenas pelo roteirista inglês ter sido referenciado quase que diretamente na primeira temporada, com um trecho do texto de TOP 10, mas também por uma teoria científica que faz parte do arcabouço conceitual de seu trabalho. Aliás, esse tópico parece fundamentar as escolhas dramáticas de Pizzolatto para a terceira temporada.
A tal teoria é a da Quarta Dimensão. O princípio em questão é que esta seria o próprio Tempo, ou seja, o Tempo não passa, ele simplesmente existe como um componente do nosso Universo. Como assim “não passa”, se tudo e todos nós envelhecemos? É mais ou menos simples. A passagem do tempo seria uma forma dos nossos cérebros tridimensionais assimilarem a existência desta dimensão. Esta organização das nossas mentes seria uma consequência da segunda lei da termodinâmica, sobre a inevitável entropia de qualquer sistema.
No entanto, extrapolando – e muito – a Relatividade no trabalho de Einstein, a Quarta Dimensão, caso pudesse ser visualizada, permitiria que enxergássemos Passado, Presente e Futuro simultaneamente. Confuso? Vamos continuar… Supondo que isso seja provado algum dia, a conclusão é que tudo que acontece, aconteceu ou acontecerá se desenrola ao mesmo tempo. Se você aprecia Quadrinhos há um tempo considerável, já deve ter lido Watchmen e Do Inferno, onde o Dr. Manhattan e William Gull exemplificam bem esse conceito. O próprio Moore comenta isso e dá uma explicação simples nesta entrevista. Como ele mesmo argumenta, não se trata de uma predestinação fatalista, mas as implicações disto na vida de cada um já renderiam um livro somente ao redor deste tópico, portanto, voltemos ao assunto principal.
O cientista e autor de Ficção Científica Rudy Rucker (presente na coletânea Futuro Proibido) escreveu um livro sobre o assunto, The Fourth Dimension: Toward a Geometry of Higher Reality, norteando a visão de Alan Moore. Pois bem, vamos encontrar a Quarta Dimensão em True Detective, mas, antes de mais nada, no primeiro ano da série. Conforme você deve ter percebido, se não dormiu no penúltimo episódio da terceira temporada, a história de Wayne Hays e Roland West se passa dentro do mesmo mundo de Rustin Cohle e Martin Hart.
Sobre a relação entre a primeira e terceira temporadas, não foi apenas um easter egg para nos lembrarmos da dupla vivida por Matthew McConaughey e Woody Harrelson. Voltemos a 2014 e vamos relembrar uma fala intrigante do saudoso Rust:
Quarta Dimensão, Eternidade, Tempo circular… Quem conhece as HQ’s de Moore, Grant Morrison e cia. sente algo de familiar nesta fala. Porém, a reflexão sobre o Tempo em si não parecia tão importante naquele arco dramático. Óbvio que existia uma sutileza que permitia o argumento e o contra-argumento sobre alguma influência sobrenatural ali, mas isso não se ancorava primordialmente em detalhes temporais, mesmo que a história se desenrolasse em dois períodos distintos.
Já em 2019, esse aspecto mostrou um peso bem maior. Aliás, ignore as teorias estapafúrdias em cima da última cena da terceira temporada, mostrando o protagonista no Vietnã. Se Wayne tivesse mesmo morrido na guerra, com toda trama se desenrolando em sua cabeça ou em algum tipo de purgatório, toda a estrutura narrativa perderia o sentido e se tornaria mera perfumaria. Vinte anos depois de O Sexto Sentido, é incrível como as pessoas anseiam por plot twists do tipo: “Ele(s) estava(m) morto(s) o tempo todo”. Basta que a coisa exija um pouco mais de participação do público e aparece alguém afirmando isso.
Wayne Hays e a percepção da Quarta Dimensão
Alguns podem até acusar Nic Pizzolatto de transitar na zona de conforto nesta última temporada. Afinal, depois do desprezo geral pelo segundo ano, era preferível a segurança do que a ousadia. De fato, a construção narrativa da trama de Wayne Hays e seu parceiro remete muito ao arco original, mas isso de forma alguma é um defeito e só demonstra a habilidade rara do showrunner. Trabalhando com três linhas temporais dentro da investigação, ele prova que isso não é apenas um acessório para disfarçar uma sinopse simples em algo complexo.
Já no primeiro episódio, a citação ao poema de Robert Penn Warren, Tell Me a Story, já indica sutilmente um dos elementos fundamentais desta trama. Segue o trecho em questão traduzido:
Conte-me uma história.
Neste século, e momento, de febre,
Conte-me uma história.
Que seja uma história de grandes distâncias, e resplandecer.
O nome da história será O Tempo,
Mas não ouse pronunciar este nome.
Conte-me uma história de intenso prazer.
Conforme avançamos nos episódios, não é preciso pensar muito para perceber que o trecho não está lá ao acaso. “O nome da história será O Tempo” é uma frase importante para entender o caráter geral da obra, mas o restante da citação também se encaixa com a resolução da trama e os derradeiros eventos da jornada de Wayne Hays.
Em 2015, nosso protagonista sofre com a perda de memória, ao mesmo tempo em que procura exorcizar seus demônios pessoais. No caso, o desaparecimento da menina Julie Purcell e a morte de seu irmão Will, que ele tenta finalmente resolver no crepúsculo de sua vida. A dificuldade é bastante agravada pela sua condição de idoso, mas os problemas graves de memória não estão ali apenas para criar um problema extra para o personagem.
Memória. Um dos primeiros diálogos da temporada fala justamente sobre a inexatidão das nossas lembranças e como isso forma nossa percepção sobre fatos. Não há como ter consciência daquilo que você realmente não lembra. A percepção de Hays sobre o que viveu em 1980 e 1990 em torno da investigação está também comprometida, mas ele é nosso guia pela história, ainda que tenhamos ocasionalmente acesso a informações que ele não tem durante o percurso.
Sobre essa dificuldade que temos em formar juízos ao juntarmos informações, um adendo importante sobre a personagem Amelia, casada com Wayne na segunda linha temporal e já falecida na terceira. É importante pensar em como havia uma ambiguidade sutil em torno dela durante toda trama, onde alguns devem ter questionado se o interesse que ela demonstrou quando se conheceram não era motivado pelo caso do desaparecimento das crianças, que inaugurou sua carreira de escritora.
Mas a penúltima cena da temporada resignifica essa impressão, sendo que esta faz parte da primeira linha temporal. Pizzolatto, esperta e sutilmente, fez o público olhá-la com desconfiança, para depois revelar a peça que faltava para entendê-la. No caso de Wayne, esse era um fragmento importante a ser recuperado em sua busca por sentido e nos faz refletir sobre a própria vida e os julgamentos que fazemos.
Voltando à Quarta Dimensão citada por Rust Cohle na primeira temporada e utilizada por Alan Moore, será que Wayne não estaria experimentando uma consciência vaga do que seria uma linha de eventos simultâneos? A cena final, com um vislumbre daquilo que seria mais uma linha temporal dentro da série, serve como argumento. Tão ou mais importante que isso, trocas de linhas temporais foram mostradas a nós como se o protagonista percebesse de alguma forma sua versão passada ou futura, mas seu problema de memória na velhice é um fator de confusão para ele e para o público.
De qualquer forma, as rimas visuais entre o primeiro e o último episódio também se conectam com a circularidade explicada por Rust. Assim, com a primeira e a terceira temporada conectadas, a sutileza está presente e nos permite entender que a trajetória Wayne Hays não é apenas uma história de investigação ambientada em três períodos, mas também um tratado sobre o Tempo e a Memória. Só que ainda há mais.
Pensar em tudo isso traz um peso de inevitabilidade e impotência. A coisa ainda ganha um ar pessimista à la Rick and Morty, só que tratado de forma séria, quando percebemos um detalhe curioso no último episódio. Quando Wayne e Roland finalmente entram na propriedade Hoyt, os dois idosos aparecem jovens no reflexo de um espelho. Haveria aí uma indicação de universo paralelo? Pode ser, pois aqui cabe outra teoria, a da Quinta Dimensão, abarcando a ideia da visualização de todos os caminhos que nossas escolhas permitem, cada uma dando origem a uma realidade diferente. Em outra realidade, a dupla pode ter chegado ao local muitos anos antes. Absurdo? Bem, estamos nos aproximando deste tópico.
Em um cenário desolador, onde um crime de infanticídio permaneceu sem solução por mais de três décadas, atormentando o policial responsável, onde está a esperança? Wayne Hays esteve na guerra do Vietnã, enfrentou preconceito, precisou engolir jogadas políticas e a burocracia em seu trabalho, carregando uma mágoa forte por metade da vida. Já é ruim o bastante, mas parece pior ainda quando imaginamos tudo acontecendo ao mesmo tempo em um universo que não entendemos direito. Perante o Absurdo, só nos resta apelar ao Absurdismo.
Albert Camus explica
Considerando somente a primeira e terceira temporadas, é possível afirmar que True Detective tem protagonistas que alcançaram a redenção. São jornadas pessoais, de gente que não salvou o mundo ou sequer a cidade, mas encontrou alguma paz no fim do caminho. Pelo menos até onde os acompanhamos. Rust Cohle, que viveu no fio da navalha e quase suicidou-se, encontrou uma forma de lidar com o absurdo da vida, construindo um sentido depois de quase ser assassinado.
Poderíamos citar Viktor Frankl e seu Em Busca de Sentido, já que este autor tem propriedade ao falar de superação em um contexto extremo. Porém, focando na situação de Wayne Hays, que só tentava realizar seu trabalho diário, encontramos uma relação mais próxima com O Mito de Sísifo, de Albert Camus, com sua filosofia do Absurdismo. Para quem não sabe ou não lembra, Sísifo é o personagem da mitologia grega, condenado a rolar uma pedra morro acima e jogá-la pelo penhasco, repetindo essa tarefa continuamente.
O leitor pode agora pensar em como a vida de 99% das pessoas no mundo encontra um eco no pobre Sísifo, não é? De qualquer forma, se penamos para encontrar motivação e sair da cama em vários dias da nossa vida, Wayne estava em condições piores que a maioria de nós e, mais do que ninguém, precisava dar sentido à sua existência. Resolver o caso das crianças Purcell era a ponta mais evidente, puxando outros assuntos mais pessoais.
O destino de Julie Purcell foi descoberto e revelado, de fato, mas a ironia da história é que a memória de Wayne o traiu em um momento decisivo. O caso foi elucidado em uma última virada do roteiro, sem que ele tivesse consciência disso. Talvez ele morra sem recuperar essa memória. Isso é ruim? Não necessariamente, já que nosso pobre protagonista parece ter encontrado sentido em sua vida através da harmonia familiar. Parece pueril e anticlimático, mas faz todo sentido pela lógica camusiana.
Uma das perguntas propostas por Camus é se existe algum sentido ou significado no Universo. O filósofo aceita a possibilidade de que exista, mas também afirma que o Homem não o descobrirá. O caso de Will e Julie Purcell envolve a morte de uma criança e o sumiço de outra. Will morreu muito novo, mas Julie conseguiu o que parece ser uma vida plena, algo que poderia não ter, caso o sequestro não acontecesse. Haveria aí algum tipo de equilíbrio, compensação ou, finalmente, SENTIDO como consequência de um evento absurdo? Arrisco dizer que essa mensagem é a intenção do roteiro. Mesmo que Wayne não tenha essa consciência, a verdade por trás do caso Purcell não deixa de existir, o que complementa o discurso com a afirmação de que não nos é permitido acessar o sentido fundamental de tudo. Portanto, só nos resta aceitar o Absurdo.
Mesmo assim, a “verdade” aceita pelo protagonista no fim de sua jornada não é menos válida por isso. Parte da filosofia de Camus, a construção de um sentido que lide com o Absurdo é necessária e foi o caminho tomado, ainda que ele não perceba. Independente de sua condição mental, Wayne Hays encontra aí uma intersecção com final de Rust Cohle. A forma quase automática com que seus problemas familiares se ajeitam é consequência disso, nos dando mais uma indicação de que nossa percepção dos coadjuvantes foi sempre guiada pelo olhar dele.
A história que nunca termina…
Conforme o poema de Robert Penn Warren já indicava, a terceira temporada de True Detective deixou algo de otimismo no ar, mesmo com tanta carga conceitual para discutirmos por horas. Nesta “história de grandes distâncias, e resplandecer”, é importante perceber que Nic Pizzolatto também nos faz refletir sobre uma infinita cadeia de eventos. Nos despedimos de Wayne Hays até felizes pela sua merecida tranquilidade alcançada, mas também ficamos intrigados com o que mais poderia acontecer depois daquele final, graças à curiosidade de seu filho.
E já que a proposta é o Tempo não-linear, Pizzolatto, como bom provocador, ainda retorce nossa reflexão sobre o infinito com o já comentado trecho no Vietnã. Assim terminou mais um grande momento da TV mundial.