Context is for Kings apresenta novos problemas para Star Trek Discovery – mas também novas coisas boas
O terceiro episódio de Star Trek Discovery, Context is for Kings, deu um passo além na construção da narrativa da série. Ainda assim, não se pode dizer que ela tenha engatado completamente. Existem muitas coisas a serem levadas em consideração – para mal, mas também para bem.
Na trama, Michael Burnham (Soneque Martin-Green) está sendo levada para cumprir a sentença emitida no episódio anterior, após se declarar culpada pelo motim que custou milhares de vidas e o início da guerra contra os klingons. No caminho, ela acaba cooptada pela Discovery, comandada pelo Capitão Gabriel Lorca (Jason Isaacs).
Este, tendo em mente as capacidades de Burnham como oficial da Frota busca usar seus talentos para cumprir uma missão emergencial – contra a vontade da própria, e mesmo de sua equipe, que agora inclui membros da destruída Shenzou, como Saru, que se tornou Imediato da nave.
Vamos começar com as coisas que não são necessariamente boas – ou que são ruins mesmo. Primeiro de tudo, o fan service. Discovery está patinando em algumas coisas muito bobas, que não necessariamente importam para a trama, mas que importam para os fãs desse universo. Entre elas, a questão da tecnologia e da continuidade.
Discovery, em tese, se passa alguns anos antes da Enterprise de Kirk. E é claro que nós temos plena consciência de que os cenários e recursos de Discovery são seriam feitos análogos a precariedade de recursos da série clássica, mas existem alguns preciosismos que poderiam ser levados em consideração – ou, ao menos, explicados no decorrer da série.
Entre eles: a Enterprise de Kirk, em tese a nau-capitânia da Frota Estelar do seu tempo, não possuía teletransporte ponto-a-ponto. Discovery possui. Isso é um problema maior do que pode parecer, porque se a série tem pretensões de alcançar Enterprise e a Série Clássica (TOS), ela está se propondo a amarrar muitas e complicadas pontas soltas.
Entre outros fan service, nós temos também alguns que afetam diretamente a trama: nós temos a confirmação do papel que a agora ex-Comandante Burnham exerce como ponte entre Discovery e TOS – e é o tipo de decisão bastante questionável, porque reduz todo o espaço e tempo para eventos de toda uma galáxia a um grupo restrito de indivíduos; e esse sempre é o tipo de trama com grandes chances de banalizar a si mesma.
Na verdade, essa preocupação em conectar Discovery à TOS – entretanto, sem ainda se preocupar em justificar os excessos tecnológicos da nave-protagonista – pode se tornar uma arapuca da qual escritores e produtores não vão conseguir sair.
As diferenças da continuidade dessas séries começam a se sobressaltar, desde pequenos detalhes irrelevantes até questões que realmente não podem ser ignoradas – como a presença de um Pingo, representando as questões irrelevantes, até a herança de Burnham, que não somente não pode ser ignorada, mas cuja natureza é quase injustificada ser desconhecida para os fãs da série. Tudo para realizar um fan service – o que é uma faca de dois gumes, pois a maneira como isso está sendo feito tem mais chances de desagradar os fãs da velha-guarda do que os espectadores novos e/ou casuais.
Questão de atenção
Fora isso, algumas questões internas ao episódio também incomodam aos mais atentos. A insistência de Lorca para manter Burnham na nave é compreensível; manda-la numa missão cuja vida de seus companheiros pode depender dela, não. Afinal durante todo o episódio, Burnham é hostilizada pelos seus novos companheiros, lembrada a todo instante de que ela é uma amotinada indesejada – fora o fato de que, um minuto antes do próprio Saru ser anuente com a ordem do Capitão, ele havia dito para a própria Burnham o quão perigosa ela é. Altamente ilógico, diria um certo Vulcano.
Ainda sobre expurgos dos primeiros episódios, dois membros dos poucos sobreviventes da Shenzou – que saibamos até agora – vão parar exatamente na mesma nave que resgata, em um evento claramente aleatório, a pessoa que quase os condenou. Não obstante, um deles é exatamente aquele que se opõe de maneira diametral ao agir e pensar de Burnham – Saru. Uma clara maneira de manter a tensão entre personagens, sem desperdiçar completamente o que vimos nos dois episódios iniciais.
Aliás, incidentalmente, essa é uma percepção clara de Context is for Kings – é praticamente um reboot da série em apenas três episódios. Virtualmente qualquer um dos status quo dos personagens e da Frota mostrados nesse episódio podiam ter começado aqui, e ninguém sentiria a menor falta dos episódios inaugurais. O que também é preocupante, por talvez demonstrar a dificuldade dos produtores de encontrar um tom para a série. Não há necessidade de tamanho esforço para estabelecer que Burnham é a protagonista da série. Nós já entendemos.
No entanto, nem tudo são trevas, e existem sim coisas boas a serem ressaltadas. Em primeiro lugar, os novos coadjuvantes de Burnham. A começar por Saru – que embora não seja novo, possui um novo status. O personagem de Doug Jones continua demonstrando um carisma a parte, e sua personalidade oferece alguns pontos de vista bastante interessantes, principalmente nesse contexto de guerra em que a Frota agora está inserida.
E falando em guerra, a apresentação do Capitão Lorca não poderia ser melhor. É obviamente um homem pragmático, com pouca inclinação a tergiversações, mas que também não é cruel. Ele parece carregar um pouco da fanfarronice de Kirk, mas com a objetividade bélica de Sisko.
Mesmo assim, ele tem personalidade própria, e deixa bastante claro que, apesar de ter plena consciência de que está em guerra, a missão primária da Frota é de exploração e descoberta, e ele lutará para restaurar isso. Mesmo em apenas um episódio, Isaacs, com toda a sua experiência e carisma, já desenha entregar uma das melhores atuações entre todos os capitães (lembrando que Patrick Stewart é e sempre será hors concours nesse tópico).
Falando na missão da Frota, outro ponto positivo no episódio. Finalmente, nós temos ciência! Dentro de um contexto, e em dose moderada, mas nós finalmente temos cargos exóticos (Anthony Rapp interpreta um astromicólogo) explicando ciência de um ponto de vista cósmico e ideal. Mesmo que os desdobramentos não permitam maiores inserções no assunto, traz uma certa sensação de alívio saber que existe a possibilidade de aprendermos algo interessante em Discovery, e não somente ver troca de raios laser.
Seguindo seu caminho
Que, apesar de tudo, é um ponto positivo que se mantém dos dois primeiros episódios. A direção de Akiva Goldsman em Context is for Kings faz de tudo um pouco, e relativamente bem. O ritmo é bom, as cenas de ação e suspense são bem filmadas, assim como as cores e planos dentro da Discovery oferecem uma visão panorâmica da beleza da nave – que, aliás, é belíssima, e tem um design magnífico, que respeita toda a história e tradição da Frota sem deixar de ter sua identidade. A cena, por exemplo, em que Burnham é resgatada, exala Star Trek do início ao fim de seus poucos minutos.
Assim, Context is for Kings faz com que Star Trek Discovery siga seu caminho. A esperança de que a série apresente algo relevante para esse universo se mantém, mesmo que nada nesses três primeiros episódios concretizem de fato essa esperança. Por enquanto, Discovery permanece um show genérico de ficção científica baseada em efeitos especiais, mas isso ainda pode mudar, principalmente se levarmos em consideração algumas pistas que começam a surgir pelo caminho.
Afinal, contexto é para os reis.
Confira nossa crítica para os episódios um e dois!