As muitas referências filosóficas de Rick and Morty
Se você está aqui, eu vou assumir uma série de coisas sobre você. Primeiro, você existe. Segundo, isso importa muito pouco, ou absolutamente nada, de um ponto de vista objetivo – mas, como eu sou guiado por um racionalismo eticamente orientado, eu agradeço por ter passado aqui. Terceiro, durante a sua breve existência enquanto ser-aí nessa específica realidade, neste específico lugar e neste específico período de tempo, você – assim como eu – provavelmente cruzou com a animação do Adult Swim, Rick and Morty, desencadeando uma série de eventos que trouxe você a este texto, escrito por outro ser cuja existência você absolutamente desconhecia – e ignorava – até aqui.
Sendo assim, vou me privar de fazer uma sinopse da série. Todos sabemos como Rick pensa (ou não), todos sabemos como Morty reage ao conhecimento do seu não-lugar no universo (ou não), todos sabemos como Jerry é completamente ignorante sobre qualquer coisa que não seja o universo que se estende somente até a sua definição de “eu” (ou… ok, ele sim).
Dessa forma, vamos tentar examinar um pouco do que Rick and Morty tem a nos oferecer enquanto algo além de entretenimento: um verdadeiro moedor de conceitos filosóficos, oriundos de algumas das escolas mais populares de dez entre dez adolescentes góticos deprimidos.
E, mais importante – o que o fato de você gostar tanto dessa série diz sobre você e o momento em que estamos vivendo.
Pessimismo cósmico – dessa vez, com Lovecraft
A melhor maneira de explicar Rick and Morty deve ser explorando um pouco do gênero único no qual ela está inserido, que seria o gênero do horror cósmico. Nós já exploramos um pouco sobre esse assunto no nosso artigo sobre Alien e o pessimismo cósmico, mas vamos retomar um pouco sobre ele antes de diversificarmos um pouco mais. Esse gênero lida com a ideia do desconhecido e da vastidão do universo, normalmente utilizados para enfatizar a nossa própria insignificância dentro do contexto de toda a existência.
O contexto no qual essa bola foi levantada pela primeira vez foi quando, ao término do movimento iluminista, e diante do surgimento da era dourada da ciência no final do século XIX, pensadores começaram a colocar a existência humana em perspectiva – e o resultado não foi exatamente um show de comédia stand-up. Surgiu um movimento que se tornou muito popular no período através do seu maior expoente, Arthur Schopenhauer – o pessimismo.
Essa linha de pensamento partia do princípio de que nós somos apenas mais uma das inúmeras espécies espalhadas pela Terra – ideia agravada pelo desenvolvimento da astrofísica contemporânea, que aceita com um nível de quase certeza de que nós não somos a única espécie inteligente do universo. Talvez, por ponto de comparação com o resto das inteligências do universo (e pelas nossas próprias atitudes enquanto espécie), sequer sejamos realmente inteligentes.
Sendo a existência humana regida por nenhum propósito maior que não a nossa própria vontade, segundo Schopenhauer, nós estamos, do ponto de vista do pessimismo, entregues à própria sorte. É claro que o pensador iria desenvolver um sistema ético que impediria sua obra intelectual se tornasse uma arma de suicídios em massa, como a discografia do Legião Urbana, mas isso não impediu que outros autores retirassem da sua obra suas próprias interpretações.
Entre eles, autor americano H. P. Lovecraft, de longe uma das maiores influências de Rick and Morty. “A ideia de que a vida cotidiana é apenas uma casca fina sobre uma realidade que é tão alienígena e tão abstrata em comparação, que mesmo meramente contempla-la poderia prejudicar a sanidade de uma pessoa comum.” Se essa citação não é o bastante para fazer você entender as implicações do horror cósmico e a contemplação do desconhecido, bem… você provavelmente é um Jerry, e não tem muito que eu possa fazer por você, seu maldito sortudo.
Ao contrário de outros autores de ficção científica, que metaforicamente colocam os seres humanos como o centro dos seus universos narrativos, onde nós somos responsáveis por acabar com uma guerra galáctica ou somos o alvo da dominação de invasores de corpos, o horror cósmico propõe a ideia de que, tirando nós mesmos, todo o resto do universo está cagando uma montanha para a Terra ou os seus maiores e melhores habitantes, os cães. Que dirá para nós humanos.
O horror cósmico também enfatiza a ideia de que aqueles que possuem uma grande quantidade de conhecimento normalmente acabam pagando por isso com um crescente sentimento de desilusão em relação ao mundo e a existência, o que não apenas alinha Lovecraft a Schopenhauer, mas também a Giacomo Leopardi – outro nome tratado no nosso artigo sobre Alien.
Leopardi estende o argumento do pessimismo de Schopenhauer em uma direção específica – enquanto o divertido austríaco estabelecia que, devido ao desejo de sempre querer mais, a vontade acaba levando ao sofrimento humano, pois as pessoas nunca estão satisfeitas com uma coisa só, Leopardi diz as pessoas viviam em um estado de felicidade que era ilusório, em tempos primevos, quando se vivia em um estado de natureza, antes que se houvesse um processo civilizatório colocado em movimento pela razão humana, quando surgiu o desejo de abandonar esse estado de sublime ignorância para partir em busca da verdade.
A razão foi o que evoluiu os seres humanos, ao mesmo tempo que revelou nossa vaidade, descobrindo o mal, a dor e a angústia. O “cósmico” após o pessimismo aqui deve ser entendido segundo a visão de Leopardi de que o mal, a dor e a angústia permeiam todo o universo, de diversas formas. Lovecraft compartilha desse ponto de vista – assim como Rick.
A trama de um horror cósmico – ou especificamente de um dos trabalhos de Lovecraft – irá certamente incluir uma série de elementos distintos, mas sempre apontando para a completa ausência de sentido na vida humana. Apesar de ser bastante para baixo, essa ideia acaba servindo mais como um contraste entre as ideias aparentemente implausíveis de Lovecraft e grandeza da nossa realidade.
Essa é a fórmula de sucesso das histórias do autor, assim como de Rick and Morty – e uma das explicações para esse sucesso. O mundo contemporâneo está sendo tomado nos últimos anos por uma atitude, no geral, segregacionistas, isoladora e pessimista. O constante medo do fracasso, do outro e do desconhecido são os principais pilares das recentes convulsões políticas e sociais que assolam o mundo, e o que Lovecraft, Schopenhauer, Leopardi e Rick estão tentando nos dizer é: parem com essa merda. Não vai levar a lugar algum.
Lovecraft normalmente coloca seus personagens contra deuses malévolos ou governantes do universo, que também normalmente permanecem indiferentes em relação a destruição de mundos ou mesmo da humanidade, metaforicamente demonstrando que nós normalmente damos mais importância ao nosso propósito no universo do que realmente merecemos. Ele frequentemente se utilizava desses seres fantásticos e imaginários para enfatizar sua postura ateísta em relação à religião, um tópico que ocupa o centro do campo de batalha ideológico contemporâneo.
Citando o próprio: “Tudo o que eu digo é que eu penso que é extremamente improvável que uma vontade central cósmica, um espírito do mundo, ou uma sobrevivência eterna de uma personalidade exista. São as mais absurdas e injustificáveis de todas as especulações que podem ser feitas sobre o universo, e eu não sou passivo o bastante para fingir que eu não as tenho como completas e negligenciáveis bobagens.”
Rick and Morty, mais uma vez, adota o mesmo tipo de atitude (de uma maneira menos agressiva), e no lugar tenta destacar algumas dessas loucuras lógicas de uma maneira cômica, permitindo aos personagens do show encontrarem significado sem precisar de um sistema de crença. Isso pode ser visto desde o episódio em que a Terra quase é destruída em um reality-show de talentos para cabeças gigantes cósmicas, até aquele em que o demônio realmente aparece – colocando prontamente o show dentro dos temas de horror cósmico.
Nesse sentido, é interessante notar a importância, assim como a evolução, do personagem de Morty. Ele se desenvolve de um ser que não difere muito de seu pai – uma criatura medíocre, mas relativamente contente consigo mesmo – para alguém que herda muito da filosofia que Rick representa.
Mas, ao contrário de Rick, Morty sempre consegue manter um mínimo de respeito pela sua humanidade, aceitando muitos dos “sentimentos irracionais” que nós temos, como amor e carinho. A eterna luta entre se sentir relevante e saber que você provavelmente não é resume a perspectiva do show – e de Lovecraft – sobre a vida. Rick, como muitos personagens de Lovecraft, se sente isolado e sozinho por conta da capacidade do seu intelecto. Ele virtualmente incapaz de se conectar com qualquer ser humano – mesmo sua família – por causa de suas experiências com o multiverso.
O que é, incidentalmente, um dos maiores contrastes feitos em relação a religião na série. Esta é quase sempre uma muleta, na qual a humanidade se apoia quando se sente fraca – ou estúpida. Isso acontece no episódio supracitado das cabeças gigantes, quando uma religião em torno dessas cabeça surge muito por conta de um completo equívoco de interpretação e ausência de informações.
Rick, com seu conhecimento, enfrenta a situação abertamente, enquanto o resto da humanidade rapidamente desenvolve rituais absurdos e abobalhados, mas que chegam ao ponto de ameaçar a vida das pessoas. Esse episódio destaca o velho embate no qual todo e qualquer sistema de crença se baseia – correlação vs. causalidade, que é a ideia de que somente porque duas coisas estão correlacionadas não significa que elas sejam, necessariamente, produto ou causa uma da outra.
São coisas como essas que sempre permitiram a disseminação de sistemas de crenças, e a série destaca muito bem a tendência histórica da humanidade de acreditar em coisas sem sentido em períodos de necessidade, e como nós ignoramos solenemente todo tipo de falácia das mais rasteiras inerentes a qualquer religião – apenas para nos sentirmos okay com as coisas.
E é aí que entra outro sujeito conhecido por ser um arco-íris humano de alegria – Friedrich Nietzsche.
Crepúsculo dos Ídolos – Ou “Como filosofar com uma arma de portal”
O tópico do existencialismo tem sido dissecado por muitos filósofos através dos tempos, assim como pelo próprio show Rick and Morty – nós mesmos já falamos um pouco sobre o assunto no nosso artigo sobre O Guia do Mochileiro das Galáxias – e cada um oferece sua própria visão particular ao tentar definir o propósito (ou não) da humanidade. Um dos mais bem reconhecidos dentro desse grupo é o filósofo alemão e crítico cultural Friedrich Nietzsche, o carro-chefe da revolução filosófica que hoje nós conhecemos como o ateísmo moderno, que se segue a outro de seus conceitos mais conhecidos, o niilismo.
Nietzsche foi pioneiro ao estabelecer muitos conceitos hoje enraizados na filosofia ocidental, oriundos da revolução intelectual provocada pelo Iluminismo e suas consequências, assim como a era dourada da ciência na virada do século XIX para o XX. Alguns desses conceitos se avultam mais do que outros, visto que Nietzsche não era exatamente conhecido pela sutileza. O homem que deu o subtítulo de “Como filosofar com o martelo” para um de seus livros fez jus à fama quando enunciou, de boca cheia: “Deus está morto”. Pensa num sujeito que ia fazer sucesso no Facebook hoje.
Entretanto, esse enunciado não foi cunhado para assustar a sua tia senhorinha religiosa, mas para reconhecer o novo status quo do eterno embate entre a religião e o conhecimento após as revoluções intelectuais supracitadas: com as novas descobertas da ciência, e com os avanços da lógica de da filosofia – notadamente nos campos da ética e da investigação da mente – Deus, que, dentro da filosofia nietzschiana é um invólucro para todo sistema de crença que existe, não era mais necessário. Seus ideais e valores estavam tão mortos quanto a possibilidade de sua existência.
Mas percebam que, ainda que muitos assumam que Nietzsche era um ateu ele próprio, outros assumem que essa posição, na verdade, sugere uma sutil compreensão da noção de divindade. O niilismo, conceito mais conhecido de Nietzsche, é a ideia de que a vida não possui qualquer propósito e nada possui realmente uma importância inerente – o que seria a vertente mais brutal de uma filosofia existencialista.
Para além disso, ele decididamente declarou que muitos dos recursos que nós utilizamos para dar significado a nós mesmos e a nossa existência – notadamente a religião – são meramente estratagemas para lidar com a ideia de que nós e nossas ações não significam nada, o que está imediatamente correlacionado com quase todas as atitudes de Rick durante a série.
Nietzsche entende que o desenvolvimento da ciência e da filosofia, e a secularização imediatamente após esses eventos, “mataram Deus”, o que significa que todos os valores sobre os quais a sociedade ocidental se baseava para se organizar foram para o espaço do dia para a noite, deixando um vácuo de valores e incerteza moral. A.k.a.: niilismo. É um fato que a revolução provocada pelo pensamento nietzschiano encontra ecos cada vez maiores.
Quase todos os países mais bem-educados do ocidente – e, hoje, mesmo no oriente – rejeitam fortemente a ingerência das religiões nas suas vidas particulares e coletivas. Esse eco é particularmente forte na geração conhecida como millenial – incidentalmente, a geração que mais e melhor atesta a ausência de valores coletivos e individuais nos quais se espelhar, tendo que buscar fora da religião essas outras fontes. E esse é um fator importante, visto que se trata exatamente dessa geração o foco de Rick and Morty.
O show ainda enfatiza sua posição contra a religião mostrando principalmente os momentos de fraqueza de Rick, quando ele clama por Deus ou ora de alguma forma, apenas para solucionar o problema em questão usando a ciência. Esse era outro tema com o qual o próprio Lovecraft brincava bastante, com seus protagonistas sendo frequentemente muito mais inteligentes que os leigos ignorantes – o que os levava quase sempre a sua ruína, na forma de completa degradação mental.
Ainda que nós não tenhamos visto Rick se deteriorar completamente, ele é o exemplo supremo de como o conhecimento e a experiência podem se tornar um ônus total, na forma da completa perturbação emocional que isso nos provoca. Rick, de muitas formas, encarna a evolução da busca humana pelo conhecimento puro do que nos cerca, mas sem a orientação de uma bússola ética.
Conforme ele explora o multiverso, ele se torna mais e mais desiludido com tudo o que vê, o que gera nele a realização de que nosso propósito é completamente subjetivo e, essencialmente, irrelevante para a continuidade da vida, o que leva a sua visão ateísta e particularmente niilista na animação.
Em contraste – uma das mais brilhantes jogadas em Rick and Morty – nós temos a outra ponta do espectro, Jerry, que consegue ser feliz com virtualmente qualquer coisa, seja o seu joguinho de tablete ou mesmo ganhando um prêmio falso em uma simulação alienígena porcamente feita, demonstrando que a ignorância é realmente uma benção. Rick and Morty tenta ser fiel à vida, no sentido de que nem tudo nela é apenas diversão e jogos, e coisas ruins acontecem.
A vida, como a natureza, é inerentemente indiferente a existência humana – ao ponto da crueldade e da injustiça – mas, entre todas as suas referências nerd e piadas (bastante) ofensivas, a série tenta se dirigir aos problemas humanos reais, sem ter a religião ou o pensamento tendencioso como muleta; apenas a ideia de que, da mesma forma que nós podemos escolher abraçar a ausência de significado no universo, nós também podemos nos orientar pela nossa bússola ética e racional, e objetivamente determinar esse significado, através de novos valores.
Nietzsche chamava isso de “transvaloração dos valores”, ou seja, superar os antigos ideais religiosos e substitui-los por algo novo, melhor. O problema é que Nietzsche não foi mais a fundo nisso, e restou a outros pensadores darem continuidade a investigação da questão da indiferença da vida e nossas liberdades de escolha. E aí, nós entramos em outras das influências de Rick and Morty: Sartre.
Ser ou não ser – ahm, não dá pra “não ser”…
Apesar de sua fama de pessimista e lúgubre, o existencialismo, na verdade, é apenas uma filosofia que não faz concessões: coloca sobre o homem toda a responsabilidade por suas ações. O escritor, filósofo e dramaturgo francês Jean-Paul Sartre, maior expoente da filosofia existencialista, parte do seguinte princípio: a existência precede a essência.
Nietzsche e Sartre convergem na medida em que ambos assumem que Deus não existe, portanto, o homem nasce despido de tudo; por definição, é um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem – o que significa que o homem primeiramente existe, se descobre, e surge no mundo; e que só depois pode tentar definir a si próprio.
Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para concebê-la, e a única natureza pré-existente é a biológica – ou seja, a sobrevivência. O resto se adquire de tal forma que não vem do próprio sujeito, mas é ensinado a ele pelo mundo exterior. Se Deus não existe não podemos encontrar já prontos – como também disse Nietzsche, assim como os pessimistas – valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta.
Assim não teremos justificativa para nosso comportamento. Estamos sós, sem desculpas. Com isso, quer dizer que o homem primeiro existe no mundo – e depois se realiza, se define por meio de suas ações e pelo que faz com sua vida. Assim, os existencialistas negam que haja algo como uma natureza humana – uma essência universal que cada indivíduo compartilhasse – ou que esta essência fosse um atributo de Deus.
Portanto, para um existencialista, não é justo dizer “sou assim porque é da minha natureza” ou “ele é assim porque Deus quer”. Não é difícil estender essa linha de argumentação àquela proposta por Rick and Morty: apesar da sua tratativa niilista, Rick – principalmente através da figura de Morty – tem plena consciência de que a existência não é completamente vazia de significado; ele apenas escolhe assim, por conta de suas experiências e conhecimentos particulares.
E é aqui que está a real convergência entre Rick and Morty e sua própria filosofia existencialista – e o motivo pelo qual você pode guardar sua caixinha de Rivotril, amigo leitor: existe uma luz no fim desse túnel.
O ser humano, no existencialismo, torna-se autor primário da verdade e da ação. Sartre afirma que o homem é “fadado a liberdade”, condenado a ser livre. Isto é claramente verossímil. No entanto, para ele, a existência parece ser uma condenação anterior e maior à liberdade. É claramente lógico afirmar que a liberdade se dá numa existência. Se, no entanto, não houver um ser existente, não haverá necessidade de liberdade. Rick and Morty deixa isso bastante claro através do Meeseeks, seres para quem a existência, sem a possibilidade de cumprir seu propósito, é pura agonia, que deriva até mesmo uma fúria homicida.
Existência é dor para um meeseeks, Jerry!
Esse episódio é bastante interessante. Muitos afirmam que os Meeseeks são uma visão da série sobre a tortura que é existir. Mas existe uma outra leitura que pode ser feita aqui: a frugalidade da existência dos meeseeks, em comparação a vida humana, é oriunda do fato de que eles não podem escolher ser outra coisa; escolher fazer outra coisa que não seja aquilo que eles foram criados para serem feitos. Dessa forma, Rick and Morty estabelece que, muito pior do que a agonia criada pela nossa “condenação a liberdade” sartreana, é uma existência cujo propósito é pré-determinado e inevitável.
Com uma cacetada só, a animação mata dois coelhos: todo tipo de desígnio pré-determinado da nossa existência – como os divinos, por exemplo – são o real fruto do sofrimento humano, como a nossa liberdade – em tese, uma condenação – é a única real maneira de ao menos fugirmos dessa angústia. Nós podemos sofrer por não podermos deixar de ser livres, mas ao menos não temos que lidar com a ideia de que esse sofrimento nos foi imposto por uma força além da nossa compreensão e alcance.
Sartre vê no existencialismo não um pessimismo, mas um otimismo, e afirma que o que amedronta os que a criticam é, única e exclusivamente, o fato de deixar ao homem a possibilidade de escolha, a potencialidade de transformação. O ser humano não pode depositar em nenhum exterior a culpa por suas frustrações, fracassos, desilusões etc. Ou mesmo eleger um tutor para orientá-lo ou mesmo para guiá-lo nas ações.
É ele o único e grande responsável por ser como é. É o peso dessa responsabilidade que faz com que Rick se comporte da forma como ele se comporta. Ele não a suporta. Ele se exime de qualquer moralidade por não ver significado nas coisas, e, por se eximir de qualquer moralidade, ele também se exime de qualquer responsabilidade sobre suas ações. Mas tal responsabilidade é bem mais ampla do que se pensa – e é aqui que Morty acaba sendo muito superior a Rick.
Esta auto-responsabilidade, segundo Sartre, não conduz o homem a fechar-se numa estrita individualidade, mas o abre para o coletivo, pois, ao ser responsável por si, torna-se também responsável por todos os seres humanos. Ao escolher a si, o homem escolhe aos outros. Rick, por diversas vezes, demonstra só entender esse princípio na marra – quando foge para outra realidade com seu sobrinho, quando se sacrifica para salva-lo de um fratura no tempo, ou no encerramente da segunda temporada, quando se entrega para ajudar a família. Mas é Morty quem nos reafirma esse princípio diversas vezes através da série.
Ele prefere, continuamente, fazer escolhas que sejam moralmente corretas, mesmo que isso implique em lidar com consequências bastante desagradáveis, do que abraçar o pessimismo niilista de Rick. Porque ele entende que, diante da vastidão do universo e da ausência de sentido neste, quem deve dar algum sentido a tudo e a si próprio é ele, e ele não está disposto a abrir dos valores que considera corretos.
Existem diversos exemplos dessas ações de Morty, seja quando ele decide confrontar seu tio e salvar uma forma gasosa, ou quando ele decide interferir em um expurgo (purge) de um planeta que eles visitam. Ambos os casos terminam de forma brutal, com Morty enfrentando a realidade crua do universo da maneira mais brutal possível. Entretanto, ele perdura, pois entende que, inevitavelmente, tudo o que ele vê e aprende com seu tio só faz sentido se ele der um sentindo – e esse sentido é oriundo dos valores que Morty carrega consigo.
Ao erigir o que é bom para sua individualidade, ou seja, formar uma norma de conduta, uma moralidade, Sartre diz que o indivíduo propõe a humanidade a sua escolha. Portanto, sua responsabilidade não é pelo individual, mas pelo coletivo. As decisões individuais são exemplo e ponto de partida para as decisões de toda a humanidade. Ser isto ou aquilo, é propor à humanidade que é bom ser isto ou aquilo. Para a doutrina existencialista não existe amor diferente daquele que se constrói.
O que culmina naquele que talvez seja, até aqui, o momento mais famigerado da série: Summer, após descobrir que era uma criança não planejada, decide fugir. Ao que Morty, em um momento de absoluta clareza intelectual e moral, diz:
Ninguém existe de propósito, ninguém pertence a lugar algum, todo mundo vai morrer.
Morty ama sua irmã. Para ele, pouco importa o que ela é – tecnicamente, um ser de outra dimensão. Ela a ama porque é esse significado que ele, do alto de sua liberdade, escolhe imputar a ela. E é dentro desse absurdo que Morty encontra a verdade sobre sua existência – a que ele dá para si próprio.
É claro que isso não impede a natureza do universo de continuar sendo bizarra e beirando o incompreensível. Rick não está totalmente errado na sua abordagem da realidade, já que ela é cruel e absurda. Mais importante do que isso, é a nossa atitude em relação a ele. E sobre o relacionamento com o absurdo, esse meio de campo entre o otimismo existencialista e o pessimismo niilista, que fala o último pensador da nossa tour de force cósmica: Albert Camus.
O mito de Rick and Morty: a busca por significado
Curiosamente, essa história de “filosofia do absurdo” – embora tenha origens anteriores, em pensadores como Søren Kierkegaard – foi batizada assim para completo desgosto de seu pensador, Camus – o que não deixa de ser uma ironia, afinal, demonstra o pouco controle que o ser humano tem até mesmo sobre o próprio pensamento. Essa filosofia do absurdo é bem resumida por Camus na sua descrição do Mito de Sísifo.
Esse mito detalha aquilo a que Camus se refere como absurdo e, mais importante, em como isso afeta nossa percepção do universo. Camus estabelece que existe um “lapso” entre aquilo que nós esperamos que o universo nos dê – ordem, razões, propósitos e significado – e aquilo que ele realmente nos dá – virtualmente nada.
A história do mito de Sísifo de Camus lida com a mesma realização tida pelos personagens na animação, assim como pelos habitantes do mundo contemporâneo, de que nós não temos nenhum propósito divino ou destino manifesto. Isso implica que restam ao indivíduo duas escolhas: ter fé e colocar nossas esperanças em algo além da nossa compreensão, ou deduzir que a vida não tem sentido. Só que Deus está tão morto para Camus como para Sartre, Nietzsche, Schopenhauer ou Lovecraft.
Mas antes de colocar uma corda no pescoço, Camus advoga por uma terceira opção: resignação. Nós podemos simplesmente aceitar que nós existimos em um universo que está cagando para nós, e que isso talvez não seja tão ruim em relação a alternativa – não existir. Ele então reflete essa condição humana na forma do herói absurdo grego, Sísifo, cuja única tarefa na existência é levar uma imensa pedra até o topo de uma montanha, apenas para vê-la rolar montanha abaixo novamente.
Ele declara que, tal qual Sísifo, nós devemos reconhecer nossa condição, nos debater com isso, tem tentar viver nossas vidas ao máximo. Rick and Morty brinca com muitas das ideias de Camus, e em última instância nos entrega o mesmo tipo de conclusão que o mito de Sísifo. Embora os personagens de Rick and Morty sejam frequentemente jogados no olho do furacão dessas revelações, a animação estabelece que, no limite, nós encontramos sentido naquilo que nos faz felizes, assim fazendo com que nossas existências valham a pena.
É por essas e outras que, no fim das contas, apesar das suas ações ambíguas, Rick ainda é um personagem que podemos chamar de “bom” – porque ele, mesmo relutantemente, ama e defende sua família. Morty pode não ser tao inteligente quanto Rick, mas ele perdura através da completa loucura que é a série abraçando seu absurdismo inerente. Já Rick é calejado pela experiência. Ele tem uma espécie de aceitação perene do quão absurda é, de fato, nossa busca por encontrar significado em universo que não tem nenhum significado para nos dar.
Significado é um construto humano, o que não significa nem remotamente, como nos ensina Morty, que ele seja inútil. Só significa que ele é muito menos importante do que nós gostaríamos que ele fosse. Significado é como nós processamos a insana quantidade de informação que é jogada sobre nós todos os dias, mas nosso significado não “significa” nada exterior a nós mesmo – e é isso que nós temos a maior dificuldade de aceitar.
Nós queremos que nossa compreensão do mundo seja universal; aplica-la a qualquer outro ser consciente que possa estar lá fora. Confrontar o pensamento de que as coisas não funcionam assim, que nossa compreensão de “significado” de fato não se aplica nada mais do que a maneira como nós vivemos nossas próprias vidas, é bastante difícil, mas também libertador. Nos dá um tipo diferente de responsabilidade – a bola levantada por Sartre: uma mais pessoal, restrita, mas mais administrável, do que a responsabilidade de ter que ser importante em escala cósmica.
Rick and Morty acaba sendo um poço de referências nerds sim, mas também de referências filosóficas. A série, calcada nesses escolas, acaba servindo como um espelho: nós vemos o que queremos ver. Nos identificamos com aquilo que queremos nos identificar. O que pode ser muito bom, muito ruim ou muito estúpido. Porque nada impede que quem esteja assistindo Rick and Morty queira muito acreditar, por alguma banalidade ou pura ignorância mesmo, ser Rick – quando na verdade, é apenas mais um Jerry auto-suficiente na frente da tela.
E assim, nós encerramos esse artigo com a foto de um pug vestido como um pug ligeiramente maior. Porquê sim.
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