Quando olhamos de perto, poucas coisas são tão estupendas quanto Supaidaman, o Homem-Aranha Japonês
Na maior parte do tempo, a existência humana neste planeta é definida por um contínua mediocridade; vidas sob o peso da rotina e das circunstâncias. Mas, às vezes, algumas evidências de um desígnio divino – uma suspensão temporária do mortal tédio cotidiano – se apresentam diante de nós, para nos lembrar que a vida vale a pena. Elementos improváveis, quase impossíveis, que convergem de maneira magnificamente inesperada, e que fazem todo nosso sofrimento valer a pena. Uma dessas evidências é um dos maiores espetáculos já criados pelo dom da imaginação humana: Supaidaman, o Homem-Aranha Japonês.
Pense na improbabilidade de algo assim dar certo. Um super-herói que é uma das mais puras expressões das angústias e da maneira como o Ocidente pensa os seus símbolos contemporâneos, perfeitamente convertido em um personagem que não poderia ser mais representativo de uma cultura de características diametralmente opostas. Isso é o Homem-Aranha Japonês. Essa deliciosa bizarrice que só pôde ver a luz do dia porque, em um determinado momento da história de duas empresas que, de muitas formas, poderiam sequer ter conhecimento uma da outra, elas decidiram não apenas reconhecer a grandeza de seus personagens e suas culturas, como também o potencial de seus personagens no respectivo outro país.
Os protagonistas
O ano é 1978. Exatos 40 anos atrás, a Marvel, no auge de sua popularidade após a criação de dezenas de novos e inovadores super-heróis pelas mãos de Stan Lee e seus parceiros, decide expandir seus mercados de influências. Na época, já era um fato conhecido que japoneses piravam com o conceito de super-heróis – importado pelos americanos após a Segunda Guerra, mas para o qual os japoneses tinham suas próprias interpretações – famigeradamente, nomes como Ultraman, Lion Man e Spectreman; incidentalmente, todos criados entre o final dos 60 e começo dos 70,mesmo período em que a Marvel estava no seu auge.
E quem estava na crista da onda dos super-heróis no Japão era a Toei Company, que havia emplacado, na metade dos anos 70, dois novos conceitos de super-heróis: os super-sentai, esquadrões de lutadores coloridos à lá Power Rangers, e a linhagem Kamen, que ficou extremamente famosa por aqui após a estreia da encarnação chamada Black Kamen Rider, na saudosa TV Manchete. Curiosamente, tanto os super-sentai quanto a franquia Kamen foram criados pelo mesmo sujeito: Shotaro Ishinomori, em 1975, se tornou uma espécie de Stan Lee nipônico – sem a parte da picaretagem, talvez – inovando o conceito de super-herói no Japão. E, assim como a Marvel, a Toei também via a possibilidade de expandir seu mercado de influência, e não existia – como ainda não existe – nenhum mercado tão bom para isso como os Estados Unidos.
Os astros estavam alinhados, e os céus tremeram sabendo do que poderia vir. Como para todo bom japonês, as noções de “limites” para a Toei eram, no mínimo, abstratas. A história da franzino protagonista criado por Steve Ditko interessava muito pouco para a empresa. Eles queriam algo mais próximo do interesse de seu público – o sucesso já mais que comprovado e estabelecido dos tokusatsu. Eles queriam fazer com o Homem-Aranha o que faziam de melhor com os seus próprios heróis: monstros gigantes, robôs e alienígenas. Não faz sentido para você, como certamente não fazia para ninguém na época. Mas, como acabamos de dizer, non-sense era o café da manhã dos funcionários da Toei.
E os deuses do Tosco e do Bizarro sorriram. Porque aí residia uma oportunidade única proporcionada pelo universo de criar algo único e incomparável. E assim foi feito.
A releitura
No fim das contas, a ideia era a seguinte: a Toei planejava usar o Homem-Aranha como um coadjuvante de uma série não-realizada de Yamato Takeru, um príncipe da antiga dinastia Yamato do Japão – ele apareceria através de uma “dobra no tempo”. No entanto, a Toei entendeu que, no fundo, a coisa não estava andando porque eles entendiam que seu público não assimilava tão bem os personagens americanos. Eles decidiram, então, arriscar pra valer – promoveram uma “niponização” total do amigão da vizinhança. E amigos e amigas, o que eles fizeram é o mais puro suco de Japão que vocês podem imaginar.
Esqueça o adolescente suburbano Peter Parker, o tio assassinado e a aranha radioativa. Na verdade, esqueça tudo. A Toei não manteve absolutamente nada da versão original do aracnídeo, com exceção do nome e do uniforme. O Homem-Aranha Japonês é um jovem piloto de motocross – a profissão mais comum do mundo – de 22 anos chamado Takuya Yamashiro. Takuya acaba sendo testemunha da queda de uma nave espacial alienígena. O que é uma “sorte” imensa, já que seu pai, o Dr. Hiroshi Yamashiro, que, falando em profissões totalmente normais, é provavelmente o único arqueólogo espacial a praticar a profissão; ao menos na Terra. Infelizmente, o Dr. Yamashiro acaba morrendo quando decide investigar a nave. Mas, apesar da tragédia, é aqui que a maravilha começa a acontecer.
Takuya não consegue nem lamentar a morte de seu pai, pois, quando o segue, acaba surpreendido por Garia, o último sobrevivente do Planeta Aranha, um mundo destruído pelo Professor Monstro e seu Exército da Cruz de Ferro – que, como todo déspota alienígena de respeito, pretende dominar o universo. Garia explica que ele estava perseguindo Monstro, mas agora precisa que alguém siga com a luta. Ele então injeta seu sangue em Takuya, que ganha poderes e habilidades de uma aranha – a biomorfologia dos habitantes do Planeta Aranha é realmente bacana – para lutar contra o Exército e Monstro, que mantém sua imortalidade bebendo o sangue de inocentes. Porque ele é realmente mau. Entendendo o perigo que essa ameaça representa, Takuya decide defender a Terra sob a égide de Homem-Aranha.
Agora eu vou permitir que o amigo leitor volte e releia esse parágrafo quantas vezes quiser. Eu tenho plena consciência do quão espetacular é essa sinopse, e de como ela merece ser apreciada em sua plenitude.
O espetáculo
Por mais que a sinopse da série seja incrível, a riqueza desse espetáculo magnífico está nos detalhes. Pois, por mais que a ideia seja maravilhosamente bizarra, a série do Homem-Aranha japonês foi, de fato, revolucionária em muitos sentidos. Como dissemos anteriormente, os tokusatsu já rolavam a um bom tempo, assim como os super-sentai também já haviam sido criados. Monstros gigantes, então, já haviam passado da maioridade na época, tendo começado em 54 com o primeiro Godzilla. O que torna essa versão do aracnídeo soberba é que ela reúne, pela primeira vez, muitos desses elementos numa série só, em um verdadeiro carnaval composto do supra-sumo da ficção b japonesa.
Entre eles – e o primeiro dos motivos pelos quais esse artigo está sendo escrito – temos isso: como todo bom tokusatsu, o Homem-Aranha enfrentava, em todo episódio, o monstro do dia – chamados na série de machine BEM’s. Até aí, tudo bem. O Professor Monstro primeiro mandava os seus minions – chamados ninders – que abriam caminho para a pancadaria, até que o BEM do dia aparecia para dar trabalho para o nosso herói. Tudo como manda a cartilha do vilão japonês. Mas o Professor Monstro tinha sua própria carta na manga: ele conseguia tornar os seus BEM’s em monstros gigantes, muito além do que o esguio herói conseguia lidar. Mas calma. Pra tudo tem solução.
Porque, quando injetou seu sangue em Takuya – o que tem que ser alguma forma de estupro – Garia também deu de lambuja todas as tralhas que o acompanhavam na luta contra o Professor Monstro. Isso inclui os braceletes de Aranha, que disparavam as icônicas teias, mas que também serviam para guardar o uniforme quando o herói estava a paisana – estilo o Flash de Gardner Fox; o Spider Machine GP-7, o carro voador que dispara mísseis e tem metralhadoras embutidas – acessórios que fariam muito sucesso aqui em São Paulo; e a nave na qual Garia veio para a Terra, fantasticamente batizada de MARVELLER.
Não dá pra ficar melhor do que isso. Mas nós estamos falando do Homem-Aranha Japonês, então dá. Porque a nave, Marveller – eu não canso de pensar nesse nome – não é apenas uma nave. Quando os monstros gigantes apareciam e a coisa saía de controle, a Marveller se tornava um robô gigante, ainda mais fantasticamente batizado de LEOPARDON.
É. É isso mesmo o que você acabou de ler. O Homem-Aranha Japonês, além de tudo, tinha um robô gigante. Por que? – você me pergunta. Por que caralhos não?! – eu te respondo. Porque a única coisa melhor que o Homem-Aranha é o Homem-Aranha em um robô gigante. Então, naturalmente, o amigo leitor vai dizer “bem, é um tokusatsu, era de se esperar que houvesse um robô gigante”. Pois aqui, meu amigo, é que está magia da coisa toda: não. Não era de se esperar. Porque, até então, nenhum tokusatsu possuía seu próprio robô gigante, nem sequer as duas séries super-sentai de Ishinomori que tinham ido ao ar até 77 – antes do Aranha estrear em 78. O primeiro super-herói japonês a ter a sua própria máquina humanóide colossal – a série que introduziu a própria ideia de que tokusatsu e robôs gigantes devem andar juntos como pão e manteiga – foi ninguém menos que o Homem-Aranha!
A introdução de Leopardon foi definitiva para tornar a série um sucesso absoluto – tanto dentro quanto fora das telas. Desenvolvido pelo experiente designer de brinquedos Katsushi Murakami, o mecha do Homem-Aranha trouxe mais lucros para a série do que os sonhos mais dementes dos produtores da Toei poderiam imaginar. Uma verdadeira febre, a série do aracnídeo se tornou um sucesso somente comparável a outros ícones como o próprio Ultraman. Mas nem só de Leopardon vivia a série.
Por incrível que possa parecer, as coreografias de luta eram realmente bacanas – e vide que estamos falando de uma versão do Aranha que não se privava de sentar a bala nos inimigos quando necessário. Está tudo lá: as poses de efeito, gritos com o nomes dos movimentos antes de eles serem feitos, etc. Talvez a única coisa que realmente diferencie o Homem-Aranha do resto dos tokusatsu – além do óbvio ululante – fosse o fato de que o Aranha não tinha um movimento- padrão para encerrar as lutas, como a famosa espada olímpica do Jiraya, e por aí vai. Já os efeitos especiais residiam naquele limite da completa tosquice aceita apenas pela consciência das limitações orçamentárias da série – e, mesmo assim, a sólida tradição de edição de vídeo japonesa dava para cada episódio a dinâmica necessária para a diversão.
É claro que os diálogos exalam a boa e velha breguice que tanto amamos no tokusatsu – incluindo a magnífica tradução para “grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, que parece ter sido feita pelo tradutor do Google quando ele não consegue reconhecer os caracteres digitados: “desistir da paz é desistir de tudo”. Quase igual. Mas apesar disso, a série surpreendia com um tom, no geral, bastante sombrio: começando com a própria motivação do protagonista, que buscava declaradamente vingança para seu pai – como também para a terra natal de Garia, que lhe deu os poderes.
Ou seja, uma ética bem diferente da sua contraparte americana. Além disso, muitos episódios figuram algumas mortes trágicas, apenas para serem vingadas pelo Aranha no final do episódio. Interprete dessa forma: Gwen Stacy não teria passado nem do episódio piloto nessa série. Talvez por isso o bordão de apresentação dele na série fosse “eu sou o emissário do inferno”. A cara do bom e velho amigão da vizinhança.
Ah, eu mencionei que as músicas da série são absolutamente sensacionais? É sério, não deixe de curtir Spider-Man Boggie, e esqueça toda e qualquer outra música relacionada ao aracnídeo – e nós sabemos que esse páreo é duro:
O Legado
A série se estendeu por 41 episódios entre Maio de 78 e Março de 79. Ela só foi interrompida porque a Marvel ficou insatisfeita com o resultado final da parceria – que produziu ainda uma versão relativamente bem sucedida de Capitão América chamada Battle Fever J – e não renovou; claramente uma atitude unilateral, porque os japoneses – como nós – ainda declaram o Homem-Aranha Japonês como uma obra de arte comparável apenas à Pietá ou à Nona Sinfonia.
Não obstante, o sucesso da série foi tão retumbante que rendeu um filme, produzido em meio a série, ainda em 78. Como era de esperar, foi um sucesso local, mesmo que totalmente desconhecido fora do Japão. Que, incidentalmente, foi também o primeiro filme do Homem-Aranha. Portanto, quando o amigo leitor se ver preso em uma das patéticas lamentações sobre Andrew Garfield e Tom Holland terem substituído Tobey Maguire, lembre-os que, na verdade, todos eles são meros substitutos para o verdadeiro primeiro Homem-Aranha: Shinj Todo, intérprete de Takuya Yamashiro.
A Toei também tirou dessa experiência um legado indelével: a partir de Supaidaman, não apenas eles investiriam ainda mais pesado em super-sentai, como também todo super-sentai contaria com um robô gigante; uma fórmula de esmagador sucesso repetida à exaustão até hoje. Repetição essa que chegou também ao super-sentai Kyōryū Sentai Zyuranger, cujos direitos foram adquiridos por um certo Haim Saban, que, tal qual os japoneses fizeram com o Homem-Aranha, reverteu completamente o conceito, transformando-os nos Power Rangers em 1993 – até hoje, também, uma lucrativa franquia. Portanto, se em algum momento da sua vida você se divertiu com os Rangers e seu Megazord, você tem uma dívida de gratidão com o Homem-Aranha Japonês.
De fato, o sucesso atingido pela série no Japão foi tão estrondoso que encontra ecos até hoje – mesmo os filmes mais duramente criticados do personagem, como O Espetacular Homem-Aranha 2, prosperaram lá; e nós sabemos o tanto de amor que isso exige. O que é uma situação diametralmente oposta ao que se viu nos Estados Unidos – renegado pela Marvel, a série se tornou um objeto de estudo cult, cujo conhecimento é reservado apenas aos mais nerds entre os nerds. Curiosamente, Stan Lee adorava – assim como qualquer pessoa sensata, ele possui um faro bastante distinto para reconhecer o sublime imerso no tosco. Não adiantou muito, e a série permaneceu na sombras durante um bom tempo.
Foi apenas recentemente, em 2015, quando estava publicando um mega-crossover chamado Spider-verse, reunindo inúmeras versões alternativas do Aranha, que a editora finalmente reconheceu o Homem-Aranha Japonês como parte oficial de sua história; uma única página que fez valer dezenas de edições de mais uma enfadonha “mega-saga”. Porque, afinal de contas, somente o Homem-Aranha original está à altura da versão japonesa. Quem é Miles Morales na fila do pão perto de Tayuka Yamashiro? O reconhecimento veio pelas mãos de Dan Slott, outro genuíno apreciador do bizarro e articulador da saga que, de tão empolgado, estimulou a Marvel a legendar episódios da série para torná-los acessíveis ao público novamente.
Porque ele reconhece o Homem-Aranha Japonês como o que ele realmente é. Um marco. Uma lenda. Um monumento. Porque se algum dia houve alguém digno da sentença “não o herói que merecemos, mas o herói que precisamos”, é ele. Pois, quando você se sentir triste, amigo leitor, deprimido, sem esperança ou por algum motivo acreditar que a vida não vale a pena, lembre-se de que um dia alguém disse: “e se nós fizéssemos uma versão japonesa do Homem-Aranha?” e – deuses me ajudem – eles o fizeram, e o fizeram maior do que qualquer um jamais poderia acreditar.
Nada parece impossível quando se contempla o maior espetáculo da Terra: o Homem-Aranha Japonês!