Nos mangás ou nos animes, Captain Tsubasa levou o futebol no Japão para outro nível
Oliver Tsubasa (originalmente Tsubasa Oozora), conhecido pelos fãs do “beautiful game” ao redor do mundo como Captain Tsubasa, foi um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos. Passou pelos maiores clubes do mundo entre os anos 80 e 90, na América do Sul e na Europa – foi particularmente importante na história do São Paulo F.C. Laureado com uma fileira interminável de títulos, Tsubasa os conseguiu como um segundo atacante/meia avançado que unia incrível velocidade, talento nos dribles e um potente chute de média e longa distância. Tsubasa foi tão impressionante que, sozinho, despertou o então inexistente interesse do Japão pelo futebol. E Tsubasa conseguiu tudo isso lidando com uma séria limitação: ele nunca existiu de verdade.
Aproveitando o clima da Copa do Mundo 2018 que acaba de começar, relembramos a lendária série Captain Tsubasa, que ficou conhecida por aqui pela tradução dada ao título do anime derivado, exibido na falecida TV Manchete (R.I.P.) – Supercampeões – é um verdadeiro marco na história dos mangás e animes. Que os japoneses adoram mangás de esporte é um fato conhecido – se fosse citar todos aqui, ia precisar de uma semana para escrever, e ia incluir alguns dos melhores mangás já escritos, como Slam Dunk, o quadrinho de basquete de Takehiko Inoue.
Mas o que Captain Tsubasa fez pelo seu esporte está em outro nível. Ninguém lá se importa com basquete por causa de SD como se importa com futebol por causa de CT. Escrito por Yoichi Takahashi, o mangá já começou sua trajetória com alguns méritos para o seu autor: a história começou a ser publicada na Weekly Shonen Jump, uma das antologias de mangás de maior alcance e vendas do Japão; mais impressionante é o fato de que conseguiu chamar a atenção dividindo páginas com nada menos que os fenômenos Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball. Nada mal para um esporte que dificilmente alguém entendia como funcionava por lá na época. Entretanto, alguns fatos curiosos cercam suas origens e a chegada ao estrelato nas prateleiras de mangás.
O primeiro deles é o fato de que o mangá não explodiu originalmente no Japão, mas no mercado de mangás pirata de Hong Kong. No período, a região era porta de entrada para inúmeros produtos japoneses pirateados e contrabandeados, visto que a economia local era precária, sob profunda influência das sanções do regime comunista chinês e das disputas políticas com o governo inglês. Mesmo sendo pirateado, o primeiro arco de Captain Tsubasa rendeu nada menos que 37 volumes, publicados entre 1981 e 1988.
Já o segundo deles é também é o mais óbvio – apesar de tudo dito acima, até o final dos anos 70, os japoneses não podiam se lixar mais para futebol. Eles já possuíam uma longa tradição atlética – com as artes marciais; o sumo, esporte milenar, era o esporte nacional do Japão; e, por conta do pós-guerra, os esportes americanos eram muito mais populares por lá – em especial, o beisebol. De fato, o próprio autor relata que, por conta da baixíssima popularidade do esporte no país, ele levou mais de dois anos enchendo o saco dos editores da revista até que eles cedessem e publicassem o material – o que só dificultava ainda mais sua vida, já que era o seu primeiro mangá.
Então, de onde surgiu a ideia de realizar um mangá baseado num esporte completamente relegado? O autor Takahashi lista alguns motivos, mas todos eles têm sua origem no primeiro deles: o japonês foi à loucura assistindo os jogos da Copa de 78, realizada na Argentina e vencida pela seleção local comandada pelo grande Mario Kempes. Segundo ele, não apenas o esporte em si, mas a atmosfera, a paixão declarada dos torcedores pelos times e a mobilização das pessoas em torno do jogo o deslumbraram por completo, visto que o recatado povo japonês não estava habituado àquele tipo de demonstração de amor ao esporte. O próprio autor chega a mencionar que preferia o futebol ao beisebol, pois os jogadores teriam mais “liberdade de movimento e criatividade”. Não obstante, Takahashi ainda fez questão de tornar seus protagonistas crianças e adolescentes, para facilitar a identificação dos seus leitores com os personagens e, por consequência, com o esporte.
Mangá de placa!
O sucesso do mangá foi tão estupidamente grande, que não levou dois anos para ele chegar às telinhas – em 1983, estreava o anime Captain Tsubasa, que ajudou a alavancar ainda mais a popularidade do lépido atacante japonês. Daí para frente, a coisa saiu completamente de controle. Do dia para a noite, os japoneses passaram a se interessar por futebol de uma tal forma que, em menos de 10 anos, fundaram a J-League, em 1992, seu torneio de elite de futebol profissional; em 15, se classificaram e participaram da sua primeira Copa – na França, em 1998; e em menos de 20, sediaram sua primeira Copa – incidentalmente, também a primeira fora do eixo Américas-Europa – junto com a Coreia do Sul, em 2002. Embora tenham tido menos sorte que os co-anfitriões – ficaram nas oitavas, enquanto os habitantes da península avançaram para as semifinais – ainda assim foi um colossal avanço. É claro que todo esse nível de esforço e organização não dependeram apenas do anime, mas a influência de Captain Tsubasa foi sim, imensa.
Entre Yasuhiko Okudera, Kazuyoshi Miura e Musashi Mizushima, pioneiros do esporte a se aventurarem fora do Japão, até Keisuke Honda, Shinji Okazaki e Shinji Kagawa – estes últimos, respectivamente, campeão da Premier League com o Leicester City e vice-campeão da Champions League com o Borussia Dortmund – grandes nomes da atual geração, todos afirmam ter lido o mangá ou visto o anime em algum momento, e declaram sua influência. Quer mais? Não foi apenas no Japão que o anime pegou. Nomes de gente como ninguém menos que Zinedine Zidane, Thierry Henry, Alessandro Del Piero, Gennaro Gattuso, Alexis Sanchez, Fernando Torres e, pasmem, Lionel Messi – todos assistiram ao anime, e declararam seu amor por ele em entrevistas. Se isso não é sinal de sucesso, eu não sei o que é.
Mas, independente de todos esses nomes internacionais e do sucesso interno, os japoneses nunca esconderam sua admiração pelos reis do futebol: nós. E não estamos apenas falando de ídolos como Rui Falcão, que saiu do Brasil para jogar na J-League e ensinar os japoneses a jogar futebol; ou Zico, que virou ídolo no Japão e conseguiu fazer a então novata e imatura seleção avançar para uma semifinal de Copa em 2002. De fato, Takahashi pirou na redondinha, e forrou seu mangá de cima a baixo com brasileiros. De fato, o grande sonho do jovem Tsubasa, ainda nas categorias juvenis do Japão, era vir jogar em terras tupiniquins. O que nos leva ao motivo desse artigo – Captain Tsubasa e os brazucas!
Captain Tsubasa, o rei do Morumbi
Curiosamente, apesar da sua íntima relação com o Brasil, o anime só foi desembarcar aqui em 97, e foi o último a ser exibido, como dissemos, pela falecida TV Manchete (R.I.P.). Mas estamos nos adiantando. Antes disso, precisamos falar sobre a paixão e influência que Takahashi sofria pelo nosso futebol; e é particularmente divertido para este autor, que é são-paulino, escrever sobre isso, pois o São Paulo F.C. tem uma relação bastante estreita com o mangá.
Isso porque muita gente acredita que a história de Tsubasa é baseada na trajetória do real jogador Kazuyoshi Miura, que chegou a jogar aqui pelo Santos e pelo Palmeiras. De fato, a semelhança é assombrosa, pois Miura também emergiu direto dos juvenis e veio para cá. Quando voltou, no começo dos anos 90, tal qual Tsubasa, ajudou sua seleção a explodir, vencendo pela primeira vez a Copa da Ásia em 92. Mas Miura não pode ter sido a real influência, ao contrário do que muitos acreditam, por conta de uma questão de tempo: sua carreira profissional só decolou em 86, quando veio para cá, 5 anos depois do mangá começar a ser publicado. Quando o mangá foi lançado, em 1981, Kazu tinha 14 anos e ainda morava em Shizuoka, no Japão. Apenas no ano seguinte, aos 15 anos, ele viria sozinho a São Paulo treinar no Juventus da Mooca. A carreira de Kazu só despontaria em 1986, quando se tornaria profissional pelo Santos e disputaria e venceria a Kirin Cup pelo Palmeiras em sua terra natal.
Apesar das semelhanças, a história de Miura é apenas uma coincidência. Mas por outro lado, existe uma possibilidade, sim, de Kazu ter extraoficialmente influenciado o Captain Tsubasa. O mangá original termina em 1988 com Oliver disputando o Mundial de Juniores pela seleção. Em 1994, após um longo hiato, Takahashi decidiu lançar uma continuação da história, mostrando os garotos tentando a vida como jogadores profissionais. Junto com o novo mangá foi feito também um novo anime, o Captain Tsubasa J, que passou na TV Manchete em meados dos anos 90 e tornou a série conhecida no Brasil – o que causou alguns problemas, que explicaremos daqui a pouco. Nesse arco, Tsubasa decide ir ao Brasil jogar o Brasileirão e seu colega de seleção, Shingo Aoi, tenta a sorte na Itália. Por coincidência, na mesma época Kazu tinha assinado com o Genoa e se tornaria o primeiro japonês a jogar a elite do futebol italiano.
A nota curiosa da trajetória de Miura é a seguinte: ele continua jogando. Não, você não fez as contas erradas. O homem tem 51 anos, e continua em atividade como um dos jogadores profissionais mais velhos do mundo (e de linha, tá? Nada de goleiro encostadão), jogando como atacante pelo Yokohama F.C., da segunda divisão japonesa.
Então, quem foi a inspiração de Tsubasa? Aqui começa a saga de Takahashi com o São Paulo. Pois a verdadeira influência do personagem foi um jogador de bizarra carreira chamado Musashi Mizushima. Bizarra porque o meia japonês ficou dez anos no São Paulo, de 1975 a 1985, sem jamais ter entrado em campo. Para ser honesto, nem eu, torcedor fanático do time, tinha ouvido falar dele até ter me interessado pela história do mangá alguns anos atrás. Segundo uma reportagem da revista Placar, foi ninguém menos que Pelé que o descobriu no Japão. Após a passagem pelo tricolor paulista, Musashi iria ainda para São Bento, Portuguesa e Santos antes de voltar para o país onde nasceu. Confira, nas palavras do próprio autor, a relação com essa curiosa história:
Apesar do potencial para brincadeiras por parte dos torcedores do São Paulo, a história de Mizushima é para ser celebrada: voltou ao Japão com o renome de ter jogado no Brasil, e ajudou a fundar a própria J-League, com a ajuda de brasileiros como o supracitado Zico. Uma vida real dedicada ao esporte de fazer inveja ao personagem fictício.
Não obstante, dentro da próprio narrativa, as relações com o Brasil são estreitadas com a figura de Roberto Hongo (na cabeça de Takahashi, um possível nome brasileiro). Hongo vê em Oliver tamanho potencial que decide se mudar para a casa do garoto – meio a contragosto da mãe – para ensinar a ele todos os macetes que só o jeitinho brasileiro conhece. Hongo serve para Oliver como figura paterna e mentor, e é um dos personagens mais bacanas da história – mesmo sendo uma das poucas figuras adulta do futebol no mangá que não emula algum grande jogador real. Ao término do primeiro arco, Tsubasa realiza seu sonho e vem jogar no Brasil. Foi só alguns anos depois, em 94, que Takahashi deu continuidade a série, em Captain Tsubasa: World Youth, mostrando a carreira profissional de Oliver. Mas depois de tanto tempo, o encanto com o São Paulo deve ter desaparecido, e Tsubasa é mostrado em um clube fictício para alcançar todas as glórias, certo? Nada disso.
Primeiro porque, como todos sabemos, Romário e Bebeto trouxeram a Taça do Mundo de volta para o Brasil depois de 24 anos. Entretanto, falando especificamente sobre o São Paulo, o encanto dos japoneses com o Tricolor do Morumbi não poderia ser maior no período. O Japão sediava, na época, o então Mundial de Clubes – chamado de inclusive de Copa Toyota, por questões de patrocínio – reunindo os campeões da Libertadores e da Champions, que havia acabado de assistir nada menos do que a lendária equipe paulistana comandada pelo não menos lendário Telê Santana, e que contava nas suas fileiras com nomes como Cafu, Raí, Zetti, Muller, Palhinha, entre outros colossos.
Em 92 e 93, respectivamente, os japoneses viram o São Paulo não tomar conhecimento nem do Milan de Arrigo Sacchi, que contava com Baresi, Maldini e Van Basten, nem do Barcelona de Cruyff, que tinha Stoichkov, Laudrup e Koeman nas suas fileiras. De fato, aquele Tricolor era tão impressionante que, no jogo contra o Barcelona, do lado dos espanhóis estava em campo ninguém menos que Pep Guardiola, maior treinador do mundo na atualidade, e que alega ter tido sua carreira como técnico diretamente influenciada pela derrota para o São Paulo de Telê. Assim, quando Tsubasa chega ao Brasil para jogar pelo São Paulo, ele está, de fato, jogando no maior time do mundo (é clubismo, sim, na cara dura. Me processem.) Logo que chega, Oliver já levanta o caneco do Brasileiro, vencendo o Flamengo na final.
A nota divertida é que, por questões de direitos autorais, no anime os nomes originais dos times não podiam ser usados. Assim, apesar dos uniformes serem idênticos – faltando apenas os brasões – a final do Brasileiro é jogada por F.C. Brancos/São Paulo (sério) e F.C. Domingos/Flamengo (não, é sério mesmo). Tsubasa só deixa o glorioso Tricolor na série seguinte, Captain Tsubasa: Road to 2002. para ir para a Espanha jogar pelo Catalunya (preciso explicar?) onde passa a conviver e jogar junto e contra as grandes estrelas do futebol mundial. E falando dessas estrelas, o mesmo problema de direitos autorais de estende aos nomes de jogadores que aparecem no anime – Maradona virou Juan Diaz, Zidane virou Zedane e Rivaldo virou Rivaul. Lembra muito o grande International Superstar Soccer, cuja seleção brasileira contava com Beranco e Allejo. Não obstante, apesar do clubismo declarado do texto e do autor, não tem jeito de fugir disso: o próprio Yoichi Takahashi declarou ter se tornado são-paulino após ter visto o time de Telê jogar no Japão. Não tenho culpa pelo time de vocês ser ruim.
Captain Tsubasa no Brasil – agora de verdade
Quem trouxe Captain Tsubasa, o anime, para o Brasil foi a Samtoy, conhecida por trazer outro blockbuster dos animes que, de muitas formas, esvaziou o bolso dos pais na época (os meus inclusos): Cavaleiros do Zodíaco. A galera da empresa percebeu, na segunda metade dos anos 90, que o anime estava enlouquecendo a garotada no México e na Itália. Não foi preciso ser um gênio da matemática para entender o que aconteceria – Captain Tsubasa + criançada ainda curtindo a vitória de 94 + a Copa de 98 chegando + animes bombando na TV = grana. Não precisou muito para a falecida TV Manchete (R.I.P.) rapidamente comprar a ideia.
Só que a conta não bateu. A falecida TV Manchete (R.I.P.) já estava funcionando por aparelhos, e a debandada de audiência era grande. Fora isso, Supercampeões também ficou preso no imenso flood de enlatados japoneses que a falecida TV Manchete (R.I.P.) simplesmente soltava de forma totalmente zoneada para tentar segurar a audiência. Só que no meio disso, havia alguns pesos pesados, como o próprio Cavaleiros, Yu Yu Hakusho, Shurato, além de tokusatsus como Kamen Rider, Solbrain entre outros. Ah sim, tinha Pantanal também (R.I.P. jovem Cristiana Oliveira).
Além disso, quando chegou aqui, ninguém avisou o público de algo relativamente importante: a série não tem um final. A continuação de Captain Tsubasa foi realizada por conta da animação nacional em relação ao bom desempenho da seleção na época. Só que a animação toda foi pro vinagre quando os Samurais Azuis não conseguiram sua classificação para a Copa de 94. A Toei, produtora do anime, acaba interrompendo-o no meio. A falecida TV Manchete (R.I.P.) simplesmente “esqueceu” de avisar para os espectadores, gerando grande insatisfação por parte da galera que acompanhava na época, que não tinha internet fácil – ou não tinha, ponto – para obter esse tipo de informação.
De fato, a própria série não se ajuda. Porque, como o amigo leitor já pôde notar, mesmo a cronologia interna de Captain Tsubasa é mais caótica que as defesas enfrentadas por Oliver. Entre mangás e animes – que não seguem a mesma história – e spin-offs, remakes, reboots de ambos, a história de Oliver Tsubasa já foi e voltou pelo menos uma dúzia de vezes. Mas afinal de contas, ninguém nunca assistiu Supercampeões pelo primor narrativo. Nós assistíamos para ver japoneses correndo por campos de 3.4 km de distância – que pareciam nunca acabar, chutes de 140 metros direto no ângulo, cabeceios subindo 3 metros acima do chão, entre outros talentos que ainda esperamos esses jogadores inúteis e chatos do mundo real desenvolverem.
Enquanto isso, aguardamos ansiosamente a maior final de Copa do Mundo preconizada pelas inúmeras versões de Captain Tsubasa: Brasil x Japão! Será que em 2018 veremos Galvão Bueno gritando “OWATAAAA” (acabou)??