Visão, do autor Tom King, surpreende ao usar um super-herói para abordar temas profundos
Um dos paradigmas da filosofia é definido através da crítica ao cartesianismo. Descartes, ao construir seu projeto epistemológico, encontrou fundamentos sólidos da razão nas suas reflexões metodológicas. No entanto, posteriormente, veio a crítica: É um projeto falho. E falho, essencialmente, porque desconsidera alguns aspectos importantes na formação do conhecimento humano. Entre outros, aspectos morais, psicológicos e afetivos. Ou seja, as partes de nós que convencionamos a chamar de “humanas”. Visão, de Tom King e Gabriel Walta, usa o herói da Marvel para criar uma HQ sobre a relação distanciada à fórceps da razão e dos afetos.
Apesar da menção à Descartes, é mais provável que o amigo leitor encontre ecos mais fortes de Asimov na HQ. Não é uma comparação injusta. Na trama, o Visão sofreu uma espécie de “reboot” e perdeu algumas características essenciais. Entre elas, sua capacidade de sentir emoções. No entanto, ele não perdeu sua memória – ele tem plena consciência de que é capaz de sentir emoções, e apenas perdeu essa capacidade. Para recuperá-la, Visão inicia um projeto de investigação das emoções humanas. Então, ele cria um cenário onde pode estimular isso a acontecer: Uma família.
Daí em diante, King explicitamente usa esse cenário como um simulacro – palavra que não é escolhida aleatoriamente. Colocar uma família de sintezóides, seres eminentemente artificiais, dentro da rotina de uma família quintessencialmente suburbana de classe média declara as intenções nada sutis do autor: Seria um deboche, se não fosse tão trágico. Apesar de ser uma abordagem interessantíssima e vasta de um super-herói, a HQ tem muito pouco disso. De fato, tira-se os uniformes coloridos, e o leitor pode entender porque comparamos a narrativa com algo asimoviano – tudo gira em torno da questão humana e de como lidamos com ela. Não apenas os aspectos mais nobres e louváveis, mas também os mais desprezíveis. Afinal, fosse o ser humano a soma dos seus melhores valores, bastaria ao Visão apenas ser o que é e sempre foi: um super-herói.
Nós e eles
Curiosamente, a trama não tem grandes arroubos de criatividade ou surpresas. Salvo um ou outro gancho que sempre para dar continuidade à trama, a verdade é que ela progride exatamente como imaginamos pela sua proposta. Visão, sua esposa e seus filhos tentam de todas as formas se misturar à população, mas – obviamente – sofrem constantemente com a desconfiança, o medo e a agressividade. Sentimentos humanos, demasiado humanos. Essas dificuldades, como já está claro, são posicionadas cuidadosamente para que King construa suas reflexões. Dentre outras, duas principais se destacam.
A primeira, mais óbvia, é a ideológica-social. Visão e seus filhos são estranhos – se destacam por sua aparência, são alienígenas à cultura local e, de muitas formas, representam uma ameaça ao status quo local. Não é preciso muito esforço para entender que o autor está abordando, de uma maneira bastante interessante, toda a questão relacionada à imigração e a polarização sócio-política dos EUA e do Ocidente como um todo. O bullying e as agressões sofridas principais pela família do Visão são explicitamente análogos a muitos problemas que sofrem pessoas que tentam reconstruir sua vida do zero em lugares estranhos e hostis – são aceitos apenas para desempenhar sua função e nada mais. Como robôs.
A segunda, mais velada, é de natura ontológica. A maior dificuldade de Visão e sua família é quantificar e racionalizar as ações humanas – um clássico debate sobre inteligências artificiais e o que define algo vivo ou não, que aqui é utilizado como um espelho para a existência humana no mundo contemporâneo. King, de forma bastante astuta, relaciona muitas formas de hostilidade aos Visões ao uso indiscriminado de tecnologia, como celulares e redes sociais. Aqui existe uma interessante abordagem latente: Os Visões, seres artificiais, se debatem para entender aspectos da existência humana para se misturar a nós. Enquanto isso, são hostilizados por seres humanos desumanizados pelas tecnologias que criaram.
P vs NP
Na última edição da série, a narração em off sobre os eventos que estão ocorrendo discorre sobre o conceito de programação de computadores “P vs NP” – uma ideia que, curiosamente, programadores tomaram da lógica proposicional filosófica. PvsNP é a ideia de que existem problemas que um computador pode facilmente resolver através de um atalho ou um algoritmo – que chamamos de “P”; Seguida pela ideia de problemas que são complexos demais para um algoritmo, fazendo com que o computador seja obrigado a rodar uma quantidade infinita de cenários até que ele subitamente encontre a resposta – “NP”.
Aqui, reside um paradoxo interessante. Em muitas narrativas que falam sobre androides, robôs e inteligências artificiais, existe um problema. Seres estritamente racionais não possuem a estrutura de camadas da mente humana conforme proposta por Freud e posteriormente expandida. O que significa que essas máquinas não possuem ego. Consequentemente, não possuem desejos. Por isso, de alguma forma, Visão não irá encontrar solução para o seu problema, porque, essencialmente, seu problema não existe.
Visão teria economizado seu tempo se tivesse lido as críticas à Descartes: Não é possível existir uma consciência sem que exista um desejo, independente da escala. Não é possível ser humano e consciente, e distinguir a razão dos afetos. É a expectativa – e horror – que projetamos sobre a ideia de uma real inteligência artificial surgir amanhã: O que ela irá pensar de nós? Mais importante: O que ela irá desejar de nós?
Tornar-se humana? Algo melhor? Pior? Eliminar a dúvida dentro de uma proposição lógica de exclusão?
NP.