Além do visual, Tokyo Ghost estimula a reavaliação dos hábitos digitais
Primeiramente, falando em vida real, é pertinente comentar que o mundo conectado gera patologias que não existiriam sem internet e redes sociais. Para quem nunca ouviu falar, FoMO, acrônimo de Fear of Missing Out, é o termo que designa a compulsão de algumas pessoas a checarem seus feeds entre intervalos curtos. É exatamente o que a frase em inglês significa, ou seja, o medo de estar perdendo alguma coisa. É esse o gancho do cotidiano real que Rick Remender usou para criar Tokyo Ghost.
Com Sean Gordon Murphy na arte, a HQ tem dez números fechando a narrativa, todos inclusos no belo encadernado da DarkSide. Como de costume, a editora caprichou na edição. Além de ser ótimo ter a história completa em um volume, este também traz vários extras entre galeria de capas alternativas, esboços e trechos do roteiro. E, falando nisso, com uma sinopse simples, Remender conseguiu criar um texto que não é uma mera desculpa para ótimos desenhos.
A história acompanha a dupla Debbie Decay e Led Dent, delegados da terra devastada que Los Angeles se tornou, graças a poluição e descaso geral das pessoas. Na verdade, ser um agente da “lei” neste futuro e neste lugar significa trabalhar para Flak, o empresário rico que fornece todo tipo de diversões digitais e ao vivo para o povo, imerso nos conteúdos da rede e alheio ao mundo real. No contexto da história, a imersão e dependência digital destas pessoas é orgânica. Nanotecnologia no sangue, como facilitador de acesso, é algo comum.
A exceção é a própria Debbie, que contrasta com o próprio Led, um brutamontes fisicamente modificado, tão viciado que não deixa de acompanhar a rede nem quando espanca ou desmembra alguém. O que mantém esses dois juntos é o passado que compartilham, quando Led era apenas Teddy, tão limpo quanto a garota. O roteiro é esperto quando precisa explicar essa virada na vida deles em flashback, trazendo uma perspectiva bem reconhecível da nossa atualidade.
Somos apresentados aos dois durante uma busca ao terrorista Davey Trauma, capaz de deslocar sua mente pelo ciberespaço. Debbie tem esperanças de que esse seja o último trabalho, estando livres depois para buscarem a única terra limpa que sobrou no mundo: Tóquio. É sua chance de viver longe deste pesadelo digital e livrar o homem que ama do vício.
Neste ambiente cyberpunk, Remender costura os pontos de virada com destreza, mas a forma como ele organiza o conteúdo crítico de Tokyo Ghost é outro fator de destaque. O autor deixa clara sua forma de pensar, mas não fica apenas no trivial de mostrar um bando de pessoas abobalhadas e viciadas em tecnologia em contraponto de alguém que está em outro extremo, de forma maniqueísta. A dependência é um tópico explorado, claro, mas não apenas a digital. Carência, hedonismo, ostentação, indiferença, felicidade, livre-arbítrio e muito mais aparecem neste carrossel, sem se atropelarem e estimulando muita reflexão.
Esse acerto não o deixa livre de deslizes. Apesar de muito bem resolvido e rico conceitualmente, o roteiro sucumbe a algumas facilidades comuns em um momento ou outro. Coincidências convenientes para fazer a história caminhar mais rápido e revelações de última hora arranham de leve essa estrutura, mas não é o bastante para diminuir o impacto do discurso da HQ. Se Requiem Para Um Sonho, de Darren Aronofsky, fez sua parte no cinema ao abordar a dependência química, mas não apenas restringindo-se a isso, Tokyo Ghost faz algo parecido para a Era Digital.
Sean Gordon Murphy e um visual estonteante
Sean Murphy dispensa apresentações. Para quem acompanha os Quadrinhos mainstream, pelo menos. A inconfundível estilização de seu traço traz uma personalidade muito própria para a HQ, mantendo os quadros limpos apesar do peso das áreas em preto e hachuras. Com a quantidade de detalhes nas páginas, é notável que tudo pareça claro e funcional, sobretudo, no que diz respeito a veículos e maquinário em geral.
O estilo do desenhista serve muito bem, inclusive, ao exagero hedonista de alguns ambientes e personagens. É interessante imaginar tais passagens ilustradas por um desenhista de estilo mais realista, que poderiam não funcionar tão bem graças a esse caráter mais burlesco. O contraste entre esses trechos e outros de mais ação ou violência gráfica também não foi problema para ele, mantendo sempre a preocupação em retratar esse futuro distópico com o máximo de profundidade.
Em termos de narrativa visual, Murphy também nos brinda com sequências que trazem o melhor de um blockbuster cinematográfico. Independente da escala de destruição ou de personagens envolvidos, o ritmo que ele impõe agrega valor ao roteiro. São recursos gráficos que enchem os olhos, nos lembrando a toda hora do potencial desta linguagem e suas características mais peculiares.
Ao seu final, Tokyo Ghost mostra que trouxe o melhor de dois mundos em termos de ficção científica cyberpunk. Quem estiver a fim de apenas viajar na ação e violência, será saciado. Quem busca um conteúdo mais elaborado para reflexão, com personagens que parecem vivos, também se satisfaz. Quem procura a união perfeita dos dois, algo muito maior do que a soma das partes e mais difícil de encontrar, termina muito feliz… ainda que com uma desconfiança incômoda sobre a internet.