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Sobre Trilhos – Sobre nós!

Através de uma arte magnífica, Sobre Trilhos emana o espírito paulistano

Nasci e cresci em São Paulo. Por diversas vezes através da vida, declarei minha relação de amor e ódio por ela. É uma zona – mas é minha zona. Minha família é formada por um punhado de estereótipos históricos paulistanos: imigrantes italianos, do interior para a cidade, começam negócio com as próprias mãos, juntam pequena fortuna, o futuro chega e a família se dissipa. É uma história clichê, mas que ainda me cativa, porque é parte da minha. São Paulo flui pelas minhas veias como trilhos. E talvez por isso Sobre Trilhos, da talentosa Talessak., tenha me envolvido tanto.

(Confira também a resenha de Cinco Vermelhos da autora!)

Resenha de Sobre Trilhos (Talessak)

A narrativa é uma colagem de pequenos episódios conectados por um fio – ou trilho – condutor: a viagem da pequena Ibi e seu involuntário acompanhante, o empertigado Dilan, para a vila de Paranapiacaba, na região metropolitana de São Paulo. No caminho, algumas aventuras e desventuras se desenrolam, imergindo o leitor nas pequenas histórias que tornaram São Paulo grande.

É um recorte histórico, sim, mas sem perder a chance de alegorias e abstrações que tentam menos explicar e mais representar o espírito de tantas pessoas que viveram no momento em que a cidade deixou de ser um entreposto agrícola passa começar a se tornar uma das maiores e mais complexas cidades da Terra. Dizendo dessa forma, parece que a autora está realizando um grande e didático compêndio. Mas não. Embora possa até ter uma função pedagógica – como ex-professor de história, eu daria tudo para voltar no tempo e usar esse quadrinho em aula – Talessak. não deixa de lado a leveza que lhe é característica.

Sua narrativa é singela, quase ingênua num bom sentido, usando o ponto de vista inocente da pequena Ibi para nos exibir quadros interconectados da grande galeria que compõe a cidade. É um contraste deliberado – somos cativados porque, para Ibi, coisas que para nós pareceriam banais, como funcionários do trem, mansões, campos de café, etc., para ela são uma grande aventura. E de fato, historicamente, foi. Não à toa – explicando para quem ainda não leu Sobre Trilhos e não é daqui – Paranapiacaba hoje se tornou um museu a céu aberto, que guarda alguns dos últimos resquícios do que foi a São Paulo Railway Company.

História sobre a história sobre trilhos

Uma iniciativa britânico-brasileira, a SPRC foi a primeira ferrovia do estado, e foi fundada para escoar de maneira mais rápida e eficiente a monumental produção de café que vinha do interior do estado para o porto de Santos. Durante quase 80 anos – 1867/1946 – seus trilhos era quase que literalmente as veias abertas que bombeavam a vida do estado e da cidade. Quando veio o colapso da economia cafeicultora pós-crise de 29 e pós-Vargas, a companhia se foi, deixando nada senão memórias e trilhos abandonados.

Felizmente, a autora é menos melancólica e ranzinza que este colunista e, no lugar de lamentar a passagem dessa parte da história da cidade, ela prefere celebrá-la com tons mais vivos. Literalmente. Se a narrativa de Sobre Trilhos é mais singela do que pretensiosa, o mesmo não pode se dizer da arte. Os traços de personagens trazem uma espécie de mistura nipo-europeia – um sincretismo tão tipicamente paulistano – onde Talessak engendra algo da sua tendência quase natural para o mangá em quadros que, por algum motivo, parecem lembrar Edgar P Jacobs, sem que tudo isso perca seu aspecto tipicamente paulistano. Como desenhista e artista plástica, não parecem haver limites para sua criatividade. De imediato, nos conquistam os tons pastéis aquarelados que compõem conceitualmente o quadrinho.

Tudo em sua composição parece estar em perfeita sintonia com o que é a narrativa – é como se fosse uma colagem de velhas fotos amareladas que encontrávamos nos albuns guardados nos armários de nossos avós. Não obstante, lembra também os tons dos velhos prédios de estações de trem e seus tijolos nus, como a estação da Luz, que ainda resiste à ruína do tempo em meio à paulicéia desvairada. Mas o toque de genialidade está em quase imperceptível iniciativa – durante a composição dos quadros da HQ, a artista também utilizou café – literalmente café – para dar o tom geral da HQ. Simplesmente brilhante.

Resenha de Sobre Trilhos (Talessak)

Sobre nós

Talessak. também mantém nessa HQ sua particular iniciativa transmídia – ela é permeada por QR Codes que permitem ao leitor acessar a trilha sonora composta pela parceira regular de Talessak., Karla Dallman. Embora, obviamente, a HQ viva muito bem sem ela, existe um envolvimento sim provocado pelas composições de Dallman, que acompanham e transmitem com perfeição a sensação acalentadora e tranquila que emana da narrativa.

Talvez toda essa ode pareça estranha para o leitor que não é de São Paulo, pois, como dito, a HQ é muito menos pretensiosa do que isso. Mas peço a indulgência do leitor para compartilhar uma pequena história. Ainda em vida, meu avô me mostrou uma cômica foto. Ele e meu tio-avô, lado a lado, sorrindo orgulhosamente em meio ao nada. Na foto, não havia nada que não um fio elétrico e um trilho de bonde, e uma única agência de banco. E mais nada.

Quando perguntei a ele porque eles estavam tão felizes na foto, ele me contou que os dois interviram junto à prefeitura para levar aquela linha e a agência para o bairro da Vila Formosa, que na época ainda era apenas um bairro de moradia para trabalhadores de Brás, Belém, etc. (“Isso aqui era tudo mato”, sabem?). Eles ajudaram a construir aquele bairro, no qual eu vivi por 30 anos. Fizeram parte da sua história, e também da cidade. Como eu também faço.

Meu avô se foi faz um tempo. Não restou dele senão fotos amareladas de outrora. Fiz questão que essa foto ficasse comigo. Porque ela me lembra da história do meu avô, que eu amava; me lembra da história da minha cidade, que eu amo de vez em quando; e me lembra da minha própria história. Que também é a história de centenas de milhares de outros paulistanos – tão bem retratados nessa HQ.

É a história de como todos chegamos aqui. Sobre Trilhos.

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