Espião soviético militante e perspicaz, Richard Sorge ajudou Stalin a derrotar os nazistas, e recebeu como recompensa a morte e o ostracismo. O grande mérito da narrativa de Sorge – O Espião, criada pela quadrinhista Isabel Kreitz e publicada no Brasil pela Editora Veneta, é o resgate de um personagem tão importante da história mundial que muitos de nós, infelizmente, conhecemos pouco ou nada. Richard Sorge nasceu no Azerbaijão e mudou-se para a Alemanha aos 3 anos. Se alistou como voluntário na Primeira Guerra Mundial combatendo pelos alemães e, ferido, acabou dispensado. Neste momento, tem contato com ideais comunistas e se junta à causa, ingressando mais tarde no Partido Comunista Soviético, em Moscou. Neste momento, ele se torna um espião a serviço dos soviéticos e viaja inicialmente para a China e posteriormente para o Japão, onde seu contato com a embaixada e a alta sociedade local lhe permitem reunir informações importantes.
A HQ de Kreitz se desenvolve a partir de depoimentos ficcionais de pessoas que teriam conhecido e entrado em contato com o espião, conferindo à HQ um caráter de documentário. O depoimento dos personagens e seu relato sobre sua experiência com Sorge se intercalam a fim de costurar um relato em uma linha de tempo contínua, sempre contando a história do espião sob o ponto de vista de um personagem secundário. O relato mais frequente é de uma pianista alemã hospedada na casa do embaixador, que acaba virando uma coadjuvante de peso na história.
A narrativa se arrasta um pouco no início, mas após as primeiras páginas ela começa a ganhar ritmo, à medida que também desperta nosso interesse pelo personagem. Longe do estereótipo de histórias de espionagem, onde há ação e tiroteios, o Sorge mostrado por Kreitz apenas faz jus a essas histórias por ser mulherengo e adepto do álcool (também pela sua paixão por automóveis e velocidade, embora não sobrasse muito do carro depois de um passeio), porém não deixava de ser um homem cordial e honesto, que apesar de conviver com os nazistas, não deixava de dizer o que pensava e de defender o que acreditava. O ritmo da história volta a perder força nas páginas finais, em parte pela escolha de narrar por depoimentos e por já sabermos do desfecho de antemão, já que o espião é um personagem histórico. Há também um excesso de frases em outros idiomas que dependem da leitura de notas de rodapé para compreensão, o que quebra o ritmo de leitura mas que, todavia, é um recurso que acrescenta credibilidade à história. No entanto, são problemas menores que não tiram o brilho da obra, pois ao entrarmos em contato com o lado humano e os relacionamentos do protagonista, percebemos que além da espionagem, essa é uma história de amor, drama e ideiais.
Chama a atenção a obra ter sido escrita por uma alemã, o que mostra o interesse deste povo por esse resgate histórico e sobre a luta contra um passado que eles em nada se orgulham, inclusive muitas vezes negando-o por vergonha (uma postura bem diferente da nossa em relação ao período militar). Hoje, a história de Sorge é reconhecida nesses dois países, sendo considerado herói nacional russo e nomeando instituições diversas. A obra de Kreitz se insere nessa busca social em rememorar as histórias de luta do povo alemão contra a barbárie que mancha sua história. Não à toa, Isabel Kreitz foi eleita a melhor quadrinhista alemã no Comic Festival de Hamburgo, de 1997. Seu traço é um show à parte. Desenhado a lápis, seus quadrinhos possuem um detalhamento incrível! Em todas as cenas é possível ver uma grande quantidade de detalhes no cenário, inclusive quando a narrativa toma um peso maior em situações que outros quadrinhistas, por vezes, esqueceriam ou mal esboçariam o cenário. Há inclusive grandes trechos de sequência de quadros mudos, onde a narrativa depende totalmente do visual para que possamos imergir na atmosfera do autor. Nestes casos, é comum o leitor passar rapidamente para o próximo quadro com balões, mas o aconselhável é uma fixação maior para cada quadro, pois ali também há uma história sendo contada.
As frases na contracapa aguçam ainda mais o interesse pela obra. São observações elogiosas de Ian Fleming (o criador de 007), de Tom Clancy (famoso até no mundo dos games), do General Douglas MacArthur e do escritor histórico Larry Collins. Sobre este último, observo uma afirmação um tanto exagerada de que Sorge com suas atuações tenha salvado Stalin e impedido a vitória dos nazistas. De fato a segunda informação passada ajudou muito Stalin a organizar suas tropas e assim, facilitar o embate com as tropas de Hitler. Contudo, o grande mérito do êxito da União Soviética consistia em seu grande contingente, a luta numa única frente (ao contrário dos alemães que eram obrigados a dividir seus esforços em duas frentes) e – sobretudo – uma tática de guerra suicida mas eficaz em que, mesmo com baixas constantes, fazia seu exército avançar cada vez mais sobre o inimigo. Há ainda outros espiões famosos no período que vale a pena conhecer, como o próprio Ian Fleming, Graham Greene, Kim Philby e Juan Pujol García (o Garbo) entre outros. A grande maioria deles enveredou pelo mundo das letras, escrevendo livros sobre história, política e espionagem. Infelizmente, Sorge não teve a mesma sorte.
Tão importante quanto a HQ, há um relato em texto no final do livro resgatando a história de Sorge e problematizando aspectos de sua vida, como questões relativas a seu esquecimento e à recuperação de sua memória, explanando, entre outras coisas, os motivos que teriam levado Stalin a negar sua existência e recusar a troca dele com prisioneiros japoneses em poder soviético. Entre as imagens, chama a atenção uma foto de Sorge na prisão com o típico uniforme listrado nazista, contudo com um corte nipônico. A imagem contrasta com as outras pela expressão de abatimento e subnutrição aliada a marcas de maus-tratos que deve ter recebido. Uma mente inquieta e inteligente silenciada pela ignorância e pela barbárie. Uma imagem que nos lembra daquilo que nunca deve ser esquecido.