Como historiador e filósofo, me deixou um tanto incomodado não saber mais sobre a história do Sendero Luminoso ao tomar esse volume em mãos para resenhar. Sabia da sua existência, obviamente, e – assim como inúmeros outros grupos de guerrilha que existiram e existem por toda a América do Sul, incluindo o Brasil – também sabia do estrago que haviam causado no Peru. Mas, tristemente, reconheço que minha formação clássica sempre impediu de me voltar mais atentamente a detalhes da história sul-americana. Talvez, exatamente por isso, ler Sendero Luminoso – História de uma Guerra Suja tenha me provocado tamanha ojeriza. Como filósofo, eu deveria ter em mente que saber é muito diferente de entender e, principalmente, de sentir.
Pois é exatamente disso que se trata esse volume lançado recentemente pela editora Veneta – conhecimento. E uma parte do conhecimento sempre envolve a memória, nossa capacidade de lembrar aquilo que foi feito pelos outros – ou por nós mesmos. Justamente por fazermos muitas coisas das quais não queremos lembrar, ou por querermos que outros esqueçam que fizemos, a raça humana inventou uma maneira perniciosa, e muitas vezes cruel, de resolver esse problema: manipular o passado. Essencialmente, manipular a memória e, portanto, o conhecimento, o que comumente pode ser reduzido a determinar o que é “certo” e o que é “errado”.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano, um dos maiores estudiosos e historiadores da história latino-americana, certa vez disse: “Temos, há muito tempo, guardado dentro de nós um silêncio muito parecido com estupidez”. Ele está certo. Os povos latino-americanos, por circunstâncias históricas e culturais, têm memória curta. De fato, é um hábito comum esquecermos partes pontuais e específicas da nossa própria história, negando fatos contundentes ou distorcendo-os para que não nos incomodem tanto.
É justamente por negarmos nossa própria história que acabamos nos silenciando. Afinal, é mais fácil, por exemplo, lembrar que durante a ditadura militar brasileira, durante apenas um breve período e somente com massivo apoio de dólares americanos, nossa economia foi bem, argumento muito utilizado pelos defensores do período, mas o que nós parecemos preferir esquecer é que isso só pôde acontecer com um custo altíssimo de vidas.
É contra esse pernicioso silêncio da morte e da história que Alfredo Villar, Luis Rossell e Jesús Cossio nos apresentam a imunda história da guerra peruana contra a guerrilha comunista Sendero Luminoso. Como em qualquer história sobre qualquer conflito, a maior dificuldade em relatar algo assim é sempre a mesma – imparcialidade. Ater-se aos eventos, tentando se eximir ao máximo de emitir qualquer tipo de opinião ou interpretação particular que possa poluir a compreensão do amigo leitor.
Existe algo sobre a história enquanto disciplina que muitas pessoas desconhecem, ignoram, ou simplesmente negam/refutam – a história é uma ciência. Seu fundamento elementar é o mesmo da física, da química, ou de qualquer uma das ciências exatas: fatos, evidências. O problema é que, quando esses fatos e evidências são ações humanas, é muito fácil e muito comum se perder nos questionamentos sobre os “comos” e “porquês” desses eventos. Todos queremos justificar nossos atos e, principalmente, sempre queremos que outras pessoas acreditem que nossas ações estão corretas, e quem quer que discorde de nós está errado. Dedos em riste em busca de um culpado e/ou de uma justificativa, tal qual a agulha de uma bússola busca desesperadamente seu Norte.
Essa espiral de falso dualismo, tão comum e tão presente até mesmo nos nossos cotidianos particulares, fatalmente nos afasta daquilo que a história realmente nos oferece: fatos, evidências – essencialmente, a verdade. Isso é uma realidade tão cruelmente contundente que mesmo o volume brasileiro dessa obra acaba incorrendo nesse problema. A introdução de Rogério de Campos, também tradutor da versão brasileira, na sua sanha de angariar a simpatia do leitor pelo material que se segue, explica cuidadosamente o surgimento – legítimo – do grupo Sendero Luminoso.
Mas, convenientemente, esquece de mencionar as origens sangrentas da ideologia comunista na qual o grupo se baseava. Poder-se-ia argumentar que o Sr. Campos não queria ser redundante – afinal, o próprio volume, que trata basicamente disso, deixa bastante claro os horrores que o pensamento comunista de guerrilha causou ao povo peruano – e também não querendo impor sua interpretação dos fatos. Mas esse é o problema de se debater história – ou você a apresenta por completo, ou fatalmente a interpretação desses fatos vai estar parcializada. Em resumo, incorreta.
É precisamente esse o valor do volume Sendero Luminoso. Os autores demonstram estar preocupados apenas com isso: a verdade, esse artigo tão raro e tão precioso, principalmente nesse momento em que o mundo, e particularmente para nós, o Brasil, demonstram estar regredindo a velhas e carcomidas formas de ideologia – tanto de “direita” quanto de “esquerda, o que quer que isso signifique hoje. A obra é um exercício de brilhantismo jornalístico, onde os autores usam a mídia do quadrinho para ilustrar, com contundente visceralidade, os horrores dessa guerra que, na prática, se estendem até hoje.
O contexto histórico não é difícil de ser compreendido, pois é muito similar ao brasileiro. No final dos anos 60, com o mundo ainda experimentando o auge da Guerra Fria, o general Juan Alvarado toma o poder no Peru. Sendo um representante da extrema-direita, garante aos seus mestres americanos que manterá seu país livre do comunismo enquanto eles o ajudarem na manutenção do seu poder. E como qualquer patético político de extrema-direita, preocupado em garantir o apoio das elites e apenas a obediência do povo, toma uma decisão extremamente impopular, que o faz ganhar o desprezo e a oposição dos estudantes e docentes peruanos e, posteriormente, da população mais pobre que os apoia.
Então, como qualquer ditador – essencialmente, um covarde escondido atrás de milhares de cães armados – Alvarado respondeu ao clamor popular da única maneira que qualquer opressor ignorante sabe responder: com uma desproporcional violência. Violência essa que, como sempre na história, acaba vitimando mais inocentes do que alvos inimigos. Essa frente de estudantes decide, obviamente, radicalizar. É aí que surge o grupo Sendero Luminoso, uma dissidência de partidos e ideólogos comunistas peruanos, mas que rapidamente se opõe a eles, por considera-los “mansos”. Pois, como qualquer lado em uma guerra, eles estavam interessados tão somente no mesmo que seus inimigos: o monopólio da verdade.
É por esse monopólio que o Sendero Luminoso parte para o ataque em 1980, dando início a uma escalada de violência equivalente somente as piores guerras vistas pelo continente sul-americano. Pelo direito de afirmar que suas ações estão corretas, e que seus inimigos burgueses do establishment peruano são responsáveis por toda a pobreza e violência das classes baixas, o Sendero não se fez de rogado ao começar a empilhar corpos nas alturas andinas do país. Fossem dos seus inimigos fardados, fossem dos seus inimigos “ocultos”, os famosos “colaboradores” – não é preciso ser um gênio para saber que inúmeros inocentes foram chamados assim e mortos simplesmente por não aderirem a nenhum dos lados.
Mas a lógica que sempre falta a qualquer revolucionário ideológico é o fato de que, quando você se situa na ponta diametralmente oposta de um extremo, você essencialmente apenas está em outro extremo. E, independente dos motivos pelos quais o Sendero Luminoso surgiu, a escolha pelos seus cursos de ação não poderia ter sido pior. Porque em todas as guerras, existe sempre um lado que dificilmente é ouvido, mas normalmente é aquele que mais se aproxima da verdade – as vítimas.
É exatamente sobre eles que esse volume se ocupa, pois, como afirmamos no início dessa resenha, nossa cultura latino-americana tem a memória curta. E sejam Alan Garcia e Abimael Guzman, líderes desse horrendo conflito, sejam Médici no Brasil ou Pinochet no Chile, os líderes despóticos que comandaram atrocidades contra seus próprios povos sabem que fazer-nos esquecer é muito fácil. Basta manter as elites felizes e o povo calado, e o próprio tempo deveria resolver o resto. Mas felizmente, existem pessoas como Villar, Rossell e Cossio, que se impõem diante da perfídia de burgueses gordos e comunistas lunáticos para dizer “nós não esqueceremos”.
O trabalho de pesquisa e construção do volume não é digno de nada menos do que um Pulitzer. A obra não tem uma linha narrativa específica – ela coleta diversos momentos em que ambos os lados simplesmente abandonaram qualquer tipo de razoabilidade, usando, como em toda a história humana, a desculpa da guerra para instaurar a anarquia. Além também de momentos – e esses são a imensa maioria, por motivos óbvios – em que o povo, os inocentes, foram pegos aos milhares no fogo cruzado entre as forças opostas.
É interessante notar, falando sobre anarquia, o fantasma de Bakunin pairando sobre as ações de ambos os lados – do Sendero e do governo/militares. O povo foi a parte que mais sofreu com essa guerra, assim como todas as outras. Mas essencialmente dele depende a vitória, pois, como bem dizia o autor russo, é ele que decide a verdade. Seria nesse momento em que o povo, não aqueles que dizem agir em nome dele, colocaria todos esses em maus lençóis – pois no momento em que ele decidisse se levantar, qualquer conflito estaria terminado. Mas, infelizmente, o povo peruano acabou não fugindo a regra, e entre 1980 e 1992, dezenas de milhares de peruanos morreram em um conflito em que, como o volume demonstra, muitas vezes não apoiavam nenhum dos lados, ou pior, simplesmente não entendiam nenhum dos dois lados e suas ações.
Esse aspecto cruel em particular é a tônica de todo a obra. Os desenhos de Cossio não são explícitos e nem se preocupam com nenhuma beleza estética – em muitos momentos são até simplórios. O que realmente importa, e nisso ele é extremamente bem-sucedido, é expor com extrema clareza gráfica todas as atrocidades cometidas por ambos os lados, e como foi somente o povo inocente e, na maior parte do tempo, pobre, quem realmente sofreu com esse conflito. A escolha dos narradores por pincelar eventos particulares e fechados em si mesmos (o que é um tremendo eufemismo desse colunista para a palavra “crimes”), em lugar de uma narrativa mais extensa, facilita também a exposição dos fatos e das evidências de maneira imparcial, atendo-se mais ao aspecto jornalístico que opinativo.
Criar uma narrativa obrigaria Villar e Rossell a desenvolver personagens e encadear situações sobre as quais eles não teriam absoluta certeza, obrigando-os a desdobrar a obra em torno de elementos de ficção – o que obviamente interfere diretamente na exposição das evidências contra os crimes e criminosos de guerra expostos no volume. Na verdade, o preciosismo e a preocupação com a exposição jornalística mais próxima possível da verdade rende até mesmo alguns momentos de inspiração estética, com fotomontagens apropriadamente imersas em meio aos desenhos de Cossio, muitas vezes tornando ainda mais contundentes as denúncias feitas pelos autores.
Mas não é somente por isso que o volume é uma magnífica obra jornalística e histórica. Quando não foi possível se ater apenas aos fatos, quando – por exemplo – esses “fatos” são declarações profundamente tendenciosas de protagonistas do conflito, os autores brilhantemente os contrastam com outros eventos que produzem uma clara e, neste caso, correta interpretação – profunda hipocrisia contida em cada um dos discursos enunciados para justificar todos os crimes de guerra – fossem do governo e dos militares, fossem do Sendero.
Villar, Rossell e Cossio não deixaram nada para trás. Porque se um crime se resolve muitas vezes não pelo ato flagrante em si, mas muitas vezes pelas pistas que se deixam para trás, a denúncia feita em formato de HQ pelo trio deveria ser o bastante para condenar qualquer um dos envolvidos apresentados. Nesse aspecto, nós podemos considerar esse volume superior até mesmo a outros grandes nomes dos quadrinhos jornalísticos, como Art Spiegelman, Marjane Satrapi ou Joe Sacco – este último até mesmo lembrado na introdução de Campos. Porque Sendero Luminoso, mais do que as obras destes autores citados, é necessária para as vítimas e sua busca por justiça.
E a maior prova de que este volume é necessário é justamente o fato de que muitos dos criminosos apresentados, de acordo com a obra, foram a julgamento, com provas reunidas de forma muito mais completa do que um quadrinho como esse jamais poderia fazer, dadas suas limitações físicas. Desnecessário dizer, mesmo que o amigo leitor ainda não tenha o volume em mãos, que a imensa maioria desses criminosos – principalmente, e obviamente, os militares – não foram condenados ou receberam penas tão brandas que até ladrões de galinhas se sentiriam insultados.
Pois é exatamente para isso que Sendero Luminoso veio ao mundo – para oferecer alguma esperança aos milhares de remanescentes das vítimas, assim como de muitos sobreviventes: de que um dia a impunidade acabe e os criminosos sejam punidos. Embora a obra seja um exemplo de jornalismo, nem ela dá conta de apresentar todos os crimes e criminosos do conflito, que elevaram as cifras de corpos para a casa das dezenas de milhares.
Afinal, no fundo, o que realmente bastaria seria essas pessoas virem à tona publicamente e admitir que não existe justificativa lógica, racional, ética ou moral para nada do que eles fizeram. Admitir que toda forma de ideologia, seja de direita, esquerda, conservadora ou liberal, são apenas engodos adotados por pessoas que estão no poder – ou que desejam o poder – para arregimentar o apoio da massa, que muitas vezes só quer uma vida pacata e feliz. Mas é claro que, se existe algo próximo de uma utopia, um mundo sem ideologias, calcado no uso da razão e da ética, é o mais distante deles. A história da humanidade, infelizmente, é determinada muitas vezes pelos cursos das guerras e, apesar de meu conhecimento sobre a história latino-americana ter sido imensamente enriquecido pela leitura de Sendero Luminoso, existe algo que minha formação clássica já havia me ensinado a muito tempo:
“Em qualquer guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”. – Ésquilo, poeta e dramaturgo grego.