Rosa de Versalhes é um marco na história dos mangás, e permanece uma leitura à frente de seu tempo
Oscar François de Jarjayes é uma das mais galantes representações dos românticos ideais de cavalheirismo que existem na ficção. Capitão francês de uma cultura no auge de sua opulência, ele retém todas as qualidades que o fazem um autêntico “homem clássico”, como se diz por aí. Não fosse por um único detalhe: Oscar é uma mulher. Entretanto, esse mero detalhe não faria de Rosa de Versalhes um marco na história das HQ´s. Ela é muito mais do que uma representação inesperada de seu protagonista.
Escrito por Riyoko Ikeda entre 1972 e 73, o mangá lançado no Brasil recentemente pela JBC, em cinco volumes, já denuncia logo no berço suas pretensões além do simples entretenimento. A autora é uma reconhecida representante de um movimento importantíssimo na história das HQ´s no Japão, o chamado Grupo de 24, que se refere ao ano aproximado em que muitas das autoras pertencentes nasceram (ano 24 da Era Showa – 1949 – na contagem japonesa). Essas artistas influenciaram pesadamente o amadurecimento da categoria de mangás chamadas shoujo, dirigida para jovens mulheres.
Na trama, temos o protagonista supracitado, que é filha de um renomado general francês. A época: França, século XVIII. O sonho do General Jarjayes era gerar um “varão” capaz de receber tudo o que ele tinha para ensinar como homem e soldado, e vê-lo ascender nos estratos do exército da dinastia Bourbon. No entanto, ele recebe uma menina. Dividido, Jarjayes decide exercer tanto seu amor paterno quanto pretensões individuais, e batiza sua filha como Oscar e decide treina-la para ser o soldado que sempre quis ser.
Oscar não o decepciona, e acaba se tornando um excepcional soldado, tanto técnica quanto moralmente. Consegue postos de destaque no exército e vive a vida que seu pai havia planejado para si. Entretanto, uma reviravolta na França também se torna uma reviravolta em sua história pessoal: A chegada de Maria Antonieta ao palácio. Daí em diante, inicia-se o desenrolar de eventos que, como sabemos, terminará de forma inevitavelmente trágica, desafiando Oscar como soldado e cidadão, mas também como homem e mulher.
O melhor de dois mundos
E por isso, mesmo hoje sua narrativa permanece surpreendente – o que não deixa de ser um objeto de análise em si pensar que os temas apresentados no mangá ainda sejam desafiadores para a sociedade como um todo quase 50 anos depois. Destacando-se ainda mais o fato de que foi escrita por uma mulher no Japão, uma sociedade extremamente conservadora e ainda bastante misógina em comparação a outras, temos um quadro mais explícito da envergadura de Rosa de Versalhes.
Seu protagonista e tema em geral são frequentemente comparados ao clássico A Princesa e o Cavaleiro, de Tezuka, já que compartilham, remotamente, o contexto de uma aventura “capa e espada”. Entretanto, a HQ do Deus do Mangá é muito mais suave e cuidadosa em como apresenta suas subversões. Ikeda é muito mais explícita – não em um sentido sexual, afinal, ainda é shoujo, mas justamente por representar a sexualidade e suas relações de uma maneira naturalizada como praticamente não existia em um gênero tão popular dos mangás.
É preciso notar que o gênero shoujo, antes, mas também após os esforços de Ikeda e suas companheiras, é um estilo marcado pela frugalidade e conservadorismo nas relações. O ponto é que Rosa carrega fortes elementos de yuri, o subgênero de mangás que envolve relações homoeróticas e afetivas entre mulheres, mas apresentada de uma maneira absolutamente não fetichista. No caso deste mangá, alguns diriam, precisamente por ser escrito por uma mulher e não um homem.
Só que, aqui é preciso destacar o pioneirismo de Rosa: Ikeda é frequentemente creditada como uma das criadoras do yuri, apresentando uma trama substancialmente mais madura do que o habitual dentro dos shoujos, e de quebra mostrando relações homoafetivas conscientes e consensuais entre seus personagens. De fato, mesmo os momentos mais explícitos de relacionamentos entre os protagonistas da trama, incluindo aí uma cena que se tornou famosa justamente pela sua ousadia, mas também por sua organicidade na trama, são absolutamente integrados ao resto da trama.
É claro, é necessário apontar que a representação da Revolução Francesa pelos olhos de uma jovem mangaka japonesa impõe uma série de lentes culturais e históricas que fazem com que a trama adquira ares de estranheza fantástica para nós, ocidentais, que conhecemos a trajetória desse período de cor e salteado, já que é matéria básica de escola. No entanto, isso acaba sendo por si só uma qualidade, já que a narrativa acaba distanciada da possibilidade de ser uma aula de história travestida e se sustenta por si própria. Com o perdão da acidez deliberada, Rosa de Versalhes, por essas características, acaba sendo uma reinterpretação fantástica desse período mais interessante do que adaptações hollywoodianas da obra de Dumas, por exemplo.
Histórico
Ainda nessa seara, é interessante notar outra pequena revolução no gênero feita por Ikeda na conclusão de Rosa. Mangás shoujo, dentro da sua representação do ideal de ingenuidade inato que ainda é considerado por muitos uma qualidade nas jovens japonesas, sempre terminam, na pior das hipóteses, com uma catarse que justifica um mínimo de sofrimento. Durante a narrativa. Em Rosa de Versalhes, já cantamos a bola lá em cima: A História é mostrada. Com “H” maiúsculo mesmo.
Quem foi decapitado, é decapitado, quem foi preso, foi preso, quem foi torturado, foi torturado, e por aí vai. É claro que é um mangá essencialmente de romance, por isso não espere horror gore. Mas é uma coragem notável por parte da autora criar uma série de relacionamentos afetivos e políticos tão intrincados entre seus personagens, para depois não optar pela saída mais fácil de uma reinterpretação fantasiosa e deixar que eles terminem como têm que terminar.
É exatamente um dos fatores que fazem com que, como dissemos, Rosa de Versalhes tenha dado um passo à frente por todo um gênero dos quadrinhos na busca por seriedade, legitimidade e, acima de tudo, sofisticação artística. Trata-se de um deleite como leitura, mas também um item essencial na biblioteca de um fã de quadrinhos. Um dos raros casos em que pioneirismo, ousadia e qualidade artística se encontram.
Rosa de Versalhes é realmente de perder a cabeça. (Qual é, vocês sabiam que ia terminar assim!).