A adaptação de Paraíso Perdido para quadrinhos mantém o impacto e genialidade do original
Por quase um século e meio, as ilustrações de Gustave Doré foram o pináculo da arte épica. Suas representações de trechos de obras como Paraíso Perdido, de John Milton, foram a epítome visual de narrativas grandiloquentes, enriquecendo ainda mais tais histórias. Entretanto, é com alguma segurança que podemos, agora, comparar Doré – e talvez até mesmo superá-lo. Pois a arte de Pablo Auladell na adaptação em quadrinhos do poema de Milton, publicado aqui pela DarkSide, não pode ser definida como nada menos do que magnífica.
A narrativa é autoexplicativa: acompanha a trajetória da queda dos anjos rebeldes liderados por Lúcifer do paraíso, a criação do homem, sua corrupção e subsequente expulsão do Éden. A execução de Auladell, que se estende por 320 páginas, já torna o tomo digno de nota. E mesmo assim, o autor teve que fazer escolhas sensíveis de quais trechos adaptar, comprimir e resumir – afinal, adaptar todos os doze cantos do poema original, nos quais inúmeros acrósticos são usados, seria uma tarefa por demais hercúlea. O autor decide respeitar a linguagem com a qual trabalha, e faz da sua versão de Paraíso Perdido uma narrativa eminentemente visual.
O que não diminui em absoluto seu impacto. Ao contrário, é opinião desse articulista que as representações artísticas do texto de Milton o potencializam – em grande escala. Auladell não é apenas um desenhista, mas um artista plástico de vastos recursos. E faz questão de desfilar esses recursos nas páginas da obra, criando cenários de carvão e grafite, monumentos e expressões de nanquim. Não somente isso, mas ele faz questão de celebrar e homenagear devidamente tema e autor trabalhados, estilizando em seu impressionismo contornos e características típicas do Renascimento tardio e do Barroco – uma escolha deliberada, em se tratando de uma adaptação de uma obra publicada entre 1667 e 1674.
A sensação é de completa estupefação. Tanto pela arte – que mais parece uma colagem de comoventes pinturas orgânica e fluida – quanto pela adaptação do poderoso texto de Milton, cujas nuances parecem tão atuais quanto eram quatro séculos atrás. O poeta inglês foi fruto de um período de convulsões políticas, sociais e culturais na Inglaterra, que polarizaram e afiaram formas distintas de pensamento. Não é coincidência que pensadores como Thomas Hobbes e John Locke tenham sido seus contemporâneos. A Guerra Civil Inglesa do século XVII, em todo seu sofrimento, gerou frutos para a arte e a filosofia.
No entanto, a relevância de Milton para a contemporaneidade está em seu radical posicionamento filosófico. Se Hobbes era um aberto defensor do absolutismo, e Locke ainda é chamado por muito de “pai do liberalismo”, Milton estava um passo mais distante. Sua reflexão sobre o contrato social estava muito mais alinhada com uma visão ainda distante para a humanidade, onde despontava, no horizonte, a alvorada das luzes da razão. O Iluminismo traria uma postura radical em relação ao abuso do poder político e a opressão do poder religioso – e o Lúcifer de Milton nada mais é do que uma abstração sobre essa subversão do pensamento, que dificilmente poderia ter sido escrita em outros contextos políticos ou históricos da Europa daquele período.
A elegia da liberdade
Paraíso Perdido é, em essência, uma reflexão sobre o preço da liberdade – um tema bastante caro aos filósofos que viveram o apogeu dos monarcas absolutos e da ascensão da Inquisição, e resumido, incidentalmente, no famoso aforismo de Milton e que é utilizado por Auladell para abrir o tomo: “Servo no Céu, Rei no Inferno”. Mais do que uma dissertação expositiva, o artista espanhol transmite essas reflexões como um autêntico quadrinista: criando jogos de luz e sombra e transmitindo todo o furor de sentimentos de protagonistas multidimensionais em intensas expressões de fúria, inveja, arrogância, desespero, dor, tristeza e abandono.
De muitas formas, embora a expressão tenha se banalizado, é impossível não se relacionar com Lúcifer, posteriormente chamado de Satanás – dois nomes que, quando investigados em sua etimologia, já propõem uma reflexão: “Lux Fero“, o portador da luz, e שָטָן (Satan), o “adversário”. Paraíso Perdido, em uma leitura superficial, pode denotar uma representação do maniqueísmo primal das religiões abraâmicas, onde o bem luta contra o mal e cada um desses lados é unidimensionalmente representado por Deus e o Diabo. Mas Milton tem outras interpretações para esse cânone. Deus exige subserviência para oferecer a perfeição eterna. Mas muitos discordam tanto da subserviência quanto da ideia de perfeição por ele oferecidas.
A metáfora aqui é óbvia. Quando observamos de perto, nuances nos planos de Deus para os anjos e os homens surgem de forma aguda. Lúcifer é o portador da luz – se evocamos o contexto do iluminismo, é o questionamento que posta uma oposição ao status quo. Satan é o adversário – de que? Do Bem? Ou das estruturas de poder vigentes? Lúcifer é, acima de tudo, alguém que questiona e que se opõe contra a imposição do poder, e é a maneira como ele faz isso, assim como as consequências de seus atos, que nos expõem a reflexão de Milton sobre a natureza do poder e seus custos para a moral enquanto conceito. Isso não significa que o anjo caído seja bom – afinal, suas ações em relação aos dois habitantes do Éden e a maneira como ele exercita o mesmo poder que critica são mais do que moralmente reprováveis; e não significa que Deus seja mal – é apenas alguém, ou algo, que exerce um poder tão distante e tão alheio à compreensão e à realidade do resto dos habitantes do universo que, aos olhos destes, parece pura opressão.
Auladell transmite com precisão essa pluralidade de perspectivas, e o sumo da obra é uma sensação de desolação diante do exercício do poder e a buscar pela liberdade. O que, é claro, para nós é uma impactante reflexão sobre o exercício das ideologias – sobre como facções opositoras tomam para si o monopólio da verdade sobre a existência, e tentam exerce-lo através da violência e da corrupção.
Há que se louvar – não em um sentido litúrgico, claro – a edição da DarkSide. É simples: não haveria outra forma melhor de apresentar essa obra ao público brasileiro. De nenhuma outra forma.
Paraíso Perdido é uma metáfora imortal para a liberdade, o poder e a compreensão humana desses conceitos. De tempos em tempos, como dito, se faz necessário retomar narrativas tão intensas, que nos falam de maneira tão íntimas, para que nunca nos esqueçamos de que a natureza humana é dividida entre o céu e o inferno; mas não sem um cinzento purgatório entre eles. Como a arte de Auladell transmite com perfeição.
O Paraíso pode ser Perdido, mas seu valor para nós é eterno.