Paciência, o sci fi de Daniel Clowes
O norte-americano Daniel Clowes não tem do que reclamar. Nome forte dos quadrinhos independentes, por isso mesmo longe da pirotecnia das grandes editoras, já teve duas de suas obras adaptadas ao cinema. Ghost World, em 2001, e o recente Wilson, com Woody Harrelson no papel título. Clowes não é estranho ao público brasileiro, inclusive, já que essas duas HQ’s foram publicadas por aqui, fora de qualquer estratégia de marketing atrelada ao lançamento dos filmes.
Se você não conhecia o cara, mas teve a curiosidade de clicar no link com o nome dele aí em cima, já sacou qual é o estilo e – mais ou menos – a pegada das histórias. Só que o nosso assunto aqui é um pouco diferente. Paciência (Patience), álbum lançado em 2016 lá fora e publicado aqui recentemente pela Nemo, é um caso à parte na obra do quadrinhista, cuja sinopse deve ter surpreendido alguns de seus fãs. Ficção científica com viagem no tempo não parece muito a praia dele, mesmo que já tenha brincado um pouco com super-heróis em The Death Ray (2004)
Paciência é a personagem título, mas nosso protagonista é seu marido Jack. O casal apaixonado vive junto em meio a dificuldades financeiras, enquanto ela luta para superar um passado que a atormenta. A notícia da gravidez aumenta a pressão, mas o amor dos dois traz alguma esperança, até que Jack a encontra misteriosamente assassinada no apartamento que dividiam.
À beira de um colapso, Jack reencontra sentido em sua vida anos depois, quando descobre existir uma tecnologia que possibilita a viagem no tempo. A investigação da identidade do assassino, possivelmente alguém conhecido, é o objetivo, impedindo assim o assassinato. Isso envolve retornar a uma tempo em que Paciência ainda não o conhecia, revelando detalhes sobre a vida que ela tentava deixar para trás e as pessoas que fizeram parte deste passado.
Clowes não se importa muito com a ciência dentro da lógica interna que construiu, na verdade. Existem algumas restrições claras e desagradáveis para Jack, mas não há muito esforço em estabelecer regras evidentes para o leitor relativas a essa tecnologia. Dentro deste aspecto, lembra o espetacular Eis O Homem, livro sobre viagem no tempo inédito no Brasil por seu conteúdo polêmico.
Qual seria a intenção do autor, então? Sim, é uma história sobre um amor que ultrapassa limites, extrapolando nossa realidade, mas é apenas isso mesmo? A repetição “clichezenta“ de que o amor é mais forte que tudo e bla bla bla…? Se for, nenhum problema, particularmente falando, pois esse discurso simples pode se apoiar em uma estrutura de roteiro eficiente. Aqui até seria esse caso, mas não em sua totalidade. Chegaremos lá.
Um autor com personalidade
Quando se fala de um artista tão característico quanto Daniel Clowes, é difícil analisar os aspectos isolados de seu trabalho, como desenho e roteiro. Ele pode ser usado como argumento para a teoria – vaga e relativa, na verdade – de Will Eisner, de que um desenhista deve ser responsável também por seu texto. Neste caso, com arte e escrita caminhando juntas, o que já é uma qualidade em si, não é possível ignorar a profusão de cores chapadas já na capa do álbum.
O leitor, ao se aventurar por essas páginas, não poderá reclamar da psicodelia desta história surreal, pois não é preciso sequer folhear Paciência para sentir esse clima. Fiel ao que promete na apresentação, o miolo entrega exatamente isso. Mesmo assim, o clima de cidade pequena e falta de perspectiva, bem conhecido pelos admiradores do quadrinhista, povoado por pessoas estranhas cujo olhar denota algum tipo de distúrbio, é bem representado e facilita a empatia por Jack e a versão mais jovem de sua esposa.
É exatamente por conta da vida chata desses personagens que a narrativa mais tradicional das páginas se mostra adequada, criando o diálogo entre conceito e visual. O traço estilizado que simplifica as figuras humanas também contribui com essa ideia, afinal, não foi por acaso que Clowes foi escolhido para criar pôster do filme Felicidade (1998), de Todd Solondz.
Mas, como estamos falando de viagem no tempo, é óbvio que existem momentos que quebram essa cadência, com arroubos visuais que chacoalham o leitor e o arrastam na jornada de Jack. Pontualmente distribuídos para que não se tornem cansativos, são trechos que contribuem para a experiência e ajudam o leitor a avançar na história. Acabamos tão ansiosos por respostas quanto nosso viajante.
Feliz na construção do suspense e capturando nossa atenção pelo desfecho, Daniel Clowes leva sua história de uma forma em que esperamos algo acontecer com interesse crescente. Ao final, a sensação é que as coisas eram simples demais para a expectativa criada. Parece que ainda faltou algo acontecer, o que pode ser, de fato, o objetivo dele. Muito provavelmente, se lembrarmos de seus outros trabalhos.
De qualquer forma, Paciência é uma obra singular em matéria de ficção científica. Ao terminá-la, é um exercício agradável refletir se realmente se essas intenções vão além do clichê sobre o amor e quais seriam. Independente disso, Clowes continua fazendo um trabalho interessante que sempre vale conferir. No entanto, me fez pensar se o álbum não funcionaria melhor como um filme dirigido por Wes Anderson ou Spike Jonze.
(Se você curte viagem no tempo, também dê uma olhada nesta resenha…)