Jodorowsky e Moebius com seu exemplar poético e contemplativo da nona arte!
Para muitos admiradores dos quadrinhos, um dos maiores trunfos dessa arte sequencial é o modo como conseguimos olhar seus diversos momentos simultaneamente, de forma a ressignificar tudo que já vimos de forma cronológica. Como se o autor tivesse congelado vários pontos no tecido temporal, dando ao leitor o tempo que for necessário para a apreciação do contexto da imagem. Em Os Olhos do Gato, Jodorowsky e Moebius elevam esse poder estético, poético e contemplativo ao máximo, se utilizando do mínimo.
Os Olhos do Gato (Les yeux du chat) foi originalmente publicado em 1978 pela editora francesa Les Humanoïdes Associés, trazendo um formato diferenciado do convencional para quadrinhos. Primeiro pela ausência dos balões de diálogo, devido ao próprio caráter lacônico da obra, além da ausência de diversos quadros por página.
Aqui, cada página possui um único e belo desenho, fazendo com que à primeira vista, ele se assemelhe mais ao formato de livro ilustrado. Essa impressão logo se desfaz quando o leitor percebe que o modo correto de ler Os Olhos do Gato é com o álbum totalmente aberto, pois as imagens acontecem simultaneamente dentro da obra.
Essa dinâmica, aparentemente simples de leitura, faz com que o álbum ganhe um caráter contemplativo muito próprio. O leitor mais calejado no texto de Alejandro Jodorowsky e nos traços de Moebius fica um tempo considerável em cada página, olhando os mínimos detalhes e refletindo sobre aquilo que acabou de presenciar, constantemente questionando se o que está vendo faz parte de um contexto mais onírico ou de um realismo fantástico. Aliás, já conferiu nossa resenha sobre outro trabalho da dupla, Garras de Anjo?
História hermética com poesia e contemplação
Por se tratar de uma história curta, discorrer muito sobre a sinopse seria um erro monumental. Por isso, me restrinjo apenas em dizer que começa com um homem vislumbrando a cidade através de sua imensa janela. Ir além desta pequena descrição seria um deslize imperdoável.
A condução da narrativa faz o leitor mergulhar de tal forma que todo seu entorno fica turvo, concentrando o foco nos traços de Moebius. De fato, é uma obra que merece ser lida em um ambiente livre de outras distrações, de modo a ressoar o próprio clima do quadrinho.
Como já mencionado, Os Olhos do Gato é extremamente econômico nas palavras que aparecem ao leitor. É claro que essa falta de verborragia na página não significa que o roteiro de Jodorowsky não seja eloquente, pois na verdade é, e muito. O modo como tudo é orquestrado e coreografado prova a enorme habilidade de roteirista em dispor imagens capazes de criar significados fluidos e fractais. Quanto mais você se aprofunda, mais percebe que não há fim.
A arte de Moebius, artista francês que já rabiscou um pouco até na Marvel com o Surfista Prateado, é hipnotizante. Suas composições são tão belas que o leitor poderia arrancar as páginas do álbum, enquadrar e pendurar na parede para contemplar durante horas a fio. Aliás, já leu seu épico O Mundo de Edena?
A sinergia do texto com a imagem é tão intensa que parece que a narrativa já existia de certa forma, em toda sua plenitude, no campo das ideias e a dupla Jodorowsky/Moebius foram o canal para materializá-la – um certo barbudo de Northampton concordaria.
Da pré-produção de Duna para os quadrinhos!
A história dos bastidores do quadrinho começa com o famigerado filme Duna, adaptação da obra homônima de Frank Herbert, que seria feito por Alejandro Jodorowsky na década de 1970. Enquanto buscava artistas para sua mega obra cinematográfica, o chileno se deparou com o ótimo trabalho de Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, e decidiu que este seria seu artista conceitual e desenhista dos storyboards.
Entre os trancos e barrancos que envolviam a produção, a dupla se uniu para fazer seus primeiros trabalhos na nona arte. Entre eles, o maravilhoso Os Olhos do Gato. Mais detalhes sobre esses bastidores estão no ótimo e curioso prefácio escrito pelo próprio Jodorowsky.
Os Olhos do Gato é um álbum obrigatório na estante de qualquer fã de quadrinhos. É um verdadeiro exemplar da sinergia entre texto e imagem. Com muita poesia e contemplação, essa obra da dupla Jodorowsky/Moebius merece o tempo, o carinho e a admiração do leitor. Contemple esse quadrinho, seja com seus olhos ou com os olhos de outrem. Contemple.