Em 2012, a editora Dynamite anunciou novas séries em HQ’s que buscavam revitalizar alguns personagens clássicos que andavam meio sumidos. Entre eles, estava o Sombra, criado para o rádio por Walter Brown Gibson no final dos anos 30, e isso não era pouca coisa. Afinal, trata-se de um personagem clássico da cultura pulp, interpretado até mesmo por Orson Welles na sua versão radiofônica. Mas entre diversas versões para quadrinhos, cinema e outras mídias, o personagem foi perdendo fôlego, até sumir de vez após a fracassada versão cinematográfica com Alec Baldwin, em 1994. A Mythos Editora nos trouxe essa nova versão da Dynamite, publicada por aqui em outubro de 2013.
Seria preciso um esforço correto, com uma equipe precisa, para trazer o personagem de volta das trevas das gavetas editoriais. A Dynamite fez o que, em teoria, seria o melhor cenário: trazer o irlandês Garth Ennis para escrever sobre um anti-herói soturno e violento. Se o amigo leitor não o conhece, vá atrás de seus trabalhos com Hellblazer, Justiceiro e Motoqueiro Fantasma, além da série que o alçou à fama, Preacher, para entender porque essa escolha era ideal. Resumidamente, é um cara acostumado a fazer com que escorra sangue das páginas, considerado uma espécie de Tarantino dos quadrinhos. Dá para entender o termo “melhor cenário” agora, certo?
Infelizmente, em O Sombra Vol. 1: O Fogo da Criação (The Shadow, Vol. 1: The Fires Of Creation), a escolha não se justifica. Pelo menos, nem de perto tanto quanto poderia, pois comandando um personagem cujo mote é “conhecer o mal que espreita no coração dos homens”, o trabalho de Ennis acaba não sendo nem tão chocante, nem tão assustador. E olha que ele se esforça, a começar pela escolha do tempo histórico da trama. O autor situa a história em um dos momentos mais brutais possíveis da humanidade, a Segunda Guerra, mas ao invés de optar pelo óbvio e mandar Lamont Cranston, alter-ego do Sombra, caçar nazistas, ele o envia para o outro lado do globo, onde uma nação – tão violenta quanto a Alemanha de Hitler, naquela época – impunha sua opressão: o império Japonês. Lá se desenrola uma trama que mistura espionagem, fuga e perseguição, além de alguns toques de eventos sobrenaturais, adentrando territórios ermos da Ásia Central em busca de algo que pode mudar os rumos da guerra. O desfecho desses eventos influenciará não apenas o destino dos envolvidos, mas de toda a humanidade.
Os adversários do Sombra, os japoneses, desde o primeiro instante, são retratados como impetuosos, metódicos e racistas, ou seja, indignos de qualquer piedade. Um prato cheio para o protagonista de Ennis se esbaldar e mostrar toda a violência escatológica pela qual o autor ficou conhecido. Só que, de forma um tanto decepcionante, aqui vemos um Ennis, digamos, “light”. Seu Sombra não é nem de perto tão ameaçador quanto seu Justiceiro e nem tão assustador quanto seu Motoqueiro Fantasma. Isso acontece, em parte, por duas escolhas, uma externa a história, e uma interna.
Primeiro, a intenção, segundo o autor, de apresenta-lo a uma nova geração de leitores. Sendo assim, não poderia exagerar na violência nem fazer um trabalho autoral demais, o que acaba amarrando-o e frustrando quem esperava uma desgraça sem fim do início ao término da trama. Segundo, a própria trama, em que Lamont Cranston aparece muito mais do que o Sombra. A intenção é clara, e até justificável, na verdade. Como se trata antes de tudo de uma história de espionagem, a figura do Sombra paira sobre os vilões como uma lenda, pois muito se fala dele, mas pouco se sabe e muitos menos se vê. Mas o tiro saiu pela culatra! Por aparecer muito pouco, e muito rápido, a figura do Sombra acaba se perdendo no meio da história, principalmente pela maneira com que Ennis nos explica sobre a Guerra, para que possamos nos localizar nela. É sabido que o roteirista é um estudioso do assunto, mas aqui seu conhecimento lhe trai. Toda a aura de terror projetada pelo anti-herói é completamente diluída pelo seu didatismo sobre o tema.
Outro fato que prejudica a caracterização do personagem são os desenhos, pois a escolha de Aaron Campbell foi equivocada. Embora seus desenhos sejam corretos, eles são insípidos e indistintos. Um personagem como o Sombra exige alguém à altura de sua figura, que saiba retratá-lo como o terror que assombra todos os homens malignos, mas Campbell nos traz apenas um vigilante genérico, em uma situação onde toda a tensão trazida pela sutileza de seus poderes sobrenaturais é completamente perdida. Torna-se mais frustrante porque o personagem possui características e habilidades, como o controle sobre a morte, a movimentação entre as sombras, entre outros, que renderiam belíssimos quadros em mãos mais habilidosas. Quem chegou a apreciar a arte de Clayton Crain para o Motoqueiro de Ennis sabe do que estamos falando. Piorando ainda para Campbell, sua arte contrasta com capas feitas por gente do naipe de Alex Ross, John Cassaday e até mesmo Howard Chaykin, responsável por uma série do Sombra nos anos 80.
O Sombra Vol. 1: O Fogo da Criação de Ennis não chega a ser dispensável, mas não é nenhum primor. É o irlandês longe da sua melhor forma. Vale para rever um personagem clássico do pulp, mas só. Pode ser lido como um leve entretenimento sem nenhum compromisso, se não se esperar nada demais. Infelizmente, nós esperávamos.
O Sombra conhece o mal que espreita o coração dos homens. Pena que não conheceu aqui uma HQ digna do seu currículo.