O Martírio de Joana Dark Side apresenta uma visão perturbadoramente simbólica da personagem histórica
Algum tempo atrás, escrevi um texto sobre uma HQ chamada Desconstruindo Una. Ela trata sobre misoginia e cultura do estupro. Para mim, um homem em diversas condições de privilégio, foi um desafio e tanto estabelecer um vínculo empático e de alteridade que me permitisse escrever apropriadamente sobre o tema. É um desafio hercúleo. E pensar nesse texto só me faz admirar ainda mais o trabalho realizado por Wagner Willian em O Martírio de Joana Dark Side, recente lançamento da Texugo Editora.
(Confira outras resenhas de obras do autor: Bulldogma e O Maestro, o Cuco e a Lenda)
Pois Wagner – também um homem – provavelmente enfrentou alguns desafios internos similares. E existe um grau maior de dificuldade entre escrever um texto analítico como o meu e compor uma obra de arte alegórica como a dele. O segundo é infinitamente mais complexo e delicado que o primeiro, pois o risco de oferecer uma interpretação equivocada é grande. Nesse aspecto, a HQ se sobressai com imenso louvor, sendo ao mesmo tempo agudamente sensível, mas não se privando de transmitir a mensagem pretendida.
A premissa, à primeira vista, parece simplória: uma reprodução do julgamento e dos dias finais da personagem histórica Joana D´Arc, a mártir francesa que alegava, por ordem de Deus, simbolizar a resistência nacional contra os invasores ingleses nos últimos atos da extensa Guerra dos Cem Anos (1337-1453); que muitos historiadores consideram como um dos marcos finais da Alta Idade Média. Essa localização histórica, por si só, já é representativa, visto que a misoginia no Ocidente atingiu um de seus pontos altos na cruel tradição literal do catolicismo apostólico – cuja representação máxima foi a chamada Santa Inquisição.
E esse é o nosso cenário. Joana, já presa, é hipocritamente acusada de inúmeras coisas: blasfêmia, heresia, apostasia, etc. Tudo para mascarar um temor primitivo e simplório: uma mulher, que se atreveu a trajar “vestes de homem”, liderou simbolicamente uma vitória histórica em uma guerra, a eterna demonstração máxima da libído masculina convertida em violência. Aceitar a vitória de Joana seria aceitar um marco de igualdade entre os gêneros – algo inaceitável para a síndrome do pequeno poder carregada por praticamente todos os homens do período.
Dessa forma, o autor constrói uma representação cruel e angustiante desse processo, com a inabalável fé da protagonista servindo de contraponto ao escárnio e deboche hipócritas de seus juízes. Potencializa esse desenvolvimento uma escolha polêmica de Willian: a estrutura do roteiro é baseada no filme A Paixão de Joana D´Arc, de Carl Dreyer, assim como as feições da protagonista são baseadas na atriz principal da película, Renée Falconetti. É uma escolha polêmica pois ela depende muito de certos conhecimentos e aceitações prévias do leitor – descrevê-las implicaria em entregar certos detalhes que poderiam prejudicar o impacto total da obra. O autor escolheu posicionar o desenvolvimento da sua narrativa em um limiar perigoso – mas a compreensão da sua alegoria só torna a obra ainda mais envolvente.
Arte sacra
Não obstante, a escolha pelo método da arte eleva ainda mais o patamar da HQ. Wagner Willian vem se firmando como um dos mais prolíficos mestres do pincel na nona arte brasileira. Seu traço transita entre linhas e suas perspectivas visuais emulam os sentimentos dos personagens: a visão de Joana quase sempre mira o acima, enquanto seus juízes miram abaixo. Joana é uma representação da santidade, enquanto seus algozes, em muito maior número, a olham com desprezo abaixo deles – o recado do autor do destino final metafísico de cada atitude é bastante claro. Não apenas isso, mas existe um crescendo no volume de contraste entre o claro e escuro da narrativa, que condiz muito apropriadamente com o ato final da HQ; ato final esse que, seguindo seu estilo já característico, conta com uma inserção de realismo fantástico – talvez divino? – que apresenta o parágrafo final de sua alegoria sobre a misoginia, em uma poderosa mensagem visual. Novamente, não iremos dar detalhes; basta dizer que, o que a arte tem de sacra, o texto tem de profano.
Incidentalmente, descrevendo dessa forma, O Martírio de Joana D´Arc parece ser uma obra monumental, um épico de nuances estendidas por vários capítulos. Não é. A HQ não tem sequer 80 páginas – o que pode ser tanto uma qualidade quanto um defeito, dependendo da perspectiva. Para este colunista, foi muito pouco. De fato, talvez a maior crítica que possa ser feita ao volume é esta: o grande mérito do volume está nessa alegoria final mencionada acima. Entretanto, resta um sabor amargo – até um pouco sádico – de que, se tivéssemos tido mais tempo para nos envolvermos com a angústia transcendental de Joana, assim como mais tempo para gerarmos maior ojeriza pelo comportamento abjeto das figuras masculinas, a alegoria que encerra a HQ seria ainda mais impactante. Nada que prejudique a fruição ou a compreensão da mensagem, pelo contrário; trata-se de uma crítica, que na verdade é um grande elogio, pois, como leitor, queria ver mais dessa ótima interpretação desse evento.
Pois a sensibilidade com que fazer consegue representar a questão da misoginia e das desigualdades de gênero de forma tão singela, em um espaço tão curto, é digna de nota. Voltemos ao primeiro parágrafo, pois essa comparação me faz saborear ainda mais os méritos de O Martírio de Joana Dark Side: toda a dificuldade que eu tive ao estabelecer minha interpretação daquela HQ parece estar representada na simplicidade do ato de Wagner Willian. Sua compreensão da alteridade e da empatia com o gênero feminino acaba brilhantemente condensada em uma metáfora/homenagem calcada em uma das mais lendárias figuras de independência feminina da história ocidental. Torçamos para que essa história chegue aos olhos e ouvidos de membros do gênero masculino que possam aprender com ela.
Para que, tal como explicitado pelo autor em seu posfácio, o martírio de Joana possa evitar o martírio de tantas outras mulheres inocentes ainda vítimas da violência do outro gênero ao redor do mundo.