O Esqueleto: O Início – ótima iniciação para o trabalho de Salvador Sanz
Salvador Sanz é um dos melhores nomes dos quadrinhos argentinos atualmente. Claramente inspirado nos mestres portenhos Oesterheld e López, criadores do Eternauta – um dos maiores clássicos da ficção científica em quadrinhos – o artista vem de um conjunto de obras bastante impressionante. Algumas delas já foram publicadas no Brasil, entre elas Legião, Noturno e o excelente Angela della Morte, tema de um Formiga na Tela. Agora, a Zarabatana, que há muitos anos vem fazendo a ponte dos quadrinhos da Argentina para o Brasil – motivo pelo qual somos imensamente gratos – nos traz mais um autêntico Sanz de ótima safra: O Esqueleto: O Início (El Esqueleto).
Aqui, o autor está no terreno que gosta e se sente confortável: uma mistura de ficção científica com terror. A trama fala sobre um vírus que atacou o gado do planeta, levando a quase extinção da raça humana. Os sobreviventes? Os vegetarianos, ou qualquer pessoa que, por algum motivo, não consome carne animal – adendo que será mais explorado em outros volumes, já publicados lá do lado dos hermanos, mas que ainda não chegaram por aqui.
O amigo leitor mais conservador que já está torcendo o nariz após a menção ao vegetarianismo, pode ficar tranquilo – suas convicções particulares não serão atacadas no conto. Ao menos, não diretamente. Pois a ideia de Sanz, ao “zumbificar” as pessoas que comem carne – a.k.a. 98% da população do planeta, incluindo este mal-diagramado escriba – é, na verdade, fazer uma crítica ao nosso comportamento auto-destrutivo enquanto espécie.
Afinal de contas, ainda não foi criada metáfora de ficção melhor, para a maneira ignorante e alienada como as massas humanas se comportam, que uma horda de zumbis em busca de “miolos”. A narrativa, que se foca na sobrevivência de Esqueleto nesse mundo pós-apocalíptico forrado de morto-vivos que se dedicam a fazer o mesmo na morte que faziam em vida – comer carne – deixa pairando no ar um argumento interessante: as pessoas que se recusaram a mudar seus hábitos antes da tragédia foram as mesmas que criaram uma consequência com a qual aqueles que discordavam agora tem que lidar.
Sutilmente, Sanz se livra de se posicionar contra ou a favor da questão do vegetarianismo, mas sutilmente crítica exatamente as consequências da nossa capacidade de dialogar e de ceder àqueles que pensam de maneira diferente da nossa própria. Lembrando, este primeiro volume tem apenas dezesseis páginas, mas é sublime.
Só pelo conceito, já valeria a pena ter esse volume por perto, mas Sanz realmente se destaca pela arte. Certamente, trata-se de um dos mais completos quadrinistas na ativa no mundo hoje, no auge do seu talento. Ao criar um mundo pós-apocalíptico, é muito fácil perder a credibilidade com o leitor. Com temas assim, a riqueza está quase sempre nos detalhes, e a arte do argentino é uma ode a essa máxima.
Arte que impressiona – e assusta
Seu trabalho com hachuras cria uma impressão de profundidade que, em determinados momentos, parece que estamos vendo uma imagem 3D. E o trabalho que o autor tem na criação desses detalhes não é puro preciosismo: Sanz entende que o efeito do horror em uma história em quadrinhos está diretamente relacionado à sua capacidade de provocar a imersão do leitor naquela história. A brilhante construção dos traçados mais leves e bem definidos dos personagens em movimento, com os desenhos pesados e sombrios dos cenários cria muitas vezes um efeito claustrofóbico, mesmo quando os personagens estão a céu aberto.
Os volumes e as texturas, reflexo desse perfeccionismo prático, tem uma função dupla: ao mesmo tempo potencializar o efeito do horror, principalmente nos closes dos monstros que perseguem esqueletos – um clássico no quesito zumbi – como também servem para destacar personagens de cenários, e os elementos do próprio cenário uns dos outros.
Parece frívolo citar algo assim, mas quando se tem o volume em mãos, percebe-se que, nas mãos de um artista menos talentoso, esse volume de elementos fatalmente criaria uma poluição visual, perdendo um pouco do seu efeito de imersão – e, portanto, de qualidade.
A única – realmente única – crítica que se pode fazer ao volume é: ele é apenas um conto, que foi publicado em meio a outras obras temáticas de terror. Com apenas dezesseis páginas, para quem está sedento por mais trabalhos desse ótimo quadrinista, acaba sendo um tanto frustrante – apenas porque desejamos mais. Entretanto, para quem ainda não conhece o trabalho de Sanz, pode ser uma ótima porta de entrada – e a história, de toda forma, funciona de maneira fechada.
Por ser uma HQ curta, parte de um processo maior ainda em desenvolvimento, pode desestimular o amigo leitor a adquiri-la; principalmente porque o preço sugerido é de 18 Temers, ou seja, quase um real por página. A opinião sincera deste remendado escritor é que, se fosse necessário escolher, ficaria com o incrível Angela della Morte. Entretanto, o volume é bem mais caro. Se amigo leitor é do tipo que prefere ver para crer, e não está disposto a arriscar seu suado dinheirinho, O Esqueleto: O Início, no mínimo, é bonito de se ver.
Nós tivemos a oportunidade de entrevistar Sanz durante a cobertura da CCXP 2016. E o homem sabe o que está fazendo. Ele é genuinamente um fã dos gêneros com que trabalha, e a tendência é produzir coisas cada vez melhores. Então aproveitamos, mais uma vez, para pedir à Zarabatana Books que continue trazendo mais obras do outro lado do Rio da Prata para cá. Já que o nosso futebol e o deles só fica pior com tempo, ao menos os quadrinhos parece que só melhoram.