Nada a Perder, de Jeff Lemire, só confirma o autor como um dos grandes da atualidade
Todos nós já fomos Derek Ouelette. Já fomos grandes promessas, reis de nossas pequenas realidades, destinados a grandes coisas em nosso rumo escolhido. Para alguns poucos, a glória vem. Mas para quase todo mundo, esses delírios de grandeza se esvaem conforme a vida e a realidade exercem todo o seu peso sobre nós, comprimindo-nos a um mesmo patamar de mediocridade, onde nos debatemos, diariamente, em busca de uma felicidade fugaz. E ainda, para outros como Derek, o peso exercido pelas circunstâncias é demais, e o que um dia nós fomos é esmagado, deixando apenas uma sombra esquálida do que um dia poderíamos ter sido. Nada a Perder, nova HQ do fenomenal Jeff Lemire, lançado este ano pela Editora Nemo, é uma espécie de elegia para esses derrotados.
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Essa graphic novel retoma um tema que, aos poucos, vai se consolidando como o mais caro ao autor: a vida e as ilusões projetadas pela periferia das grandes civilizações e seus enormes holofotes. Reilustrando essa metáfora, tal qual em O Condado de Essex, Lemire se utiliza novamente do hóquei, o esporte mais popular do seu Canadá natal, para a parábola desenvolvida por um grande promessa que nunca se cumpriu. De muitas formas, isso dá um certo toque de universalidade para a história – não é difícil para o leitor brasileiro se identificar com uma trajetória assim, meramente substituindo o hóquei pelo futebol, por exemplo.
Afinal, de quantos Dereks futebolísticos nós já ouvimos falar – uma jóia intocável do esporte, que prometia feitos incríveis; mas que acabou imerso nos próprios delírios de grandeza, tornando-se alguém medíocre. Mas aqui se aplica aquela velha máxima – quanto maior a ascensão, maior a queda. Existe uma imensa diferença entre ser uma grande promessa da confeitaria e uma grande promessa de um esporte amado por milhões. Derek sofreu o peso inevitável das expectativas, e, quando se revelou alguém comum, quebrou como alguém comum: degringolou no alcoolismo e na violência, caindo no total oblívio em uma cidade além de qualquer perspectiva.
Memória, história e esquecimento
Dessa forma, Lemire constrói o que parece ser um drama – e não deixa de ser. O envolvimento que temos com a narrativa está diretamente relacionado a capacidade de nos identificarmos, ao menos em alguma medida, com o protagonista – em que pese o quão desprezível ele é. Mas a trama realmente se desenvolve a partir do momento em que sua trajetória sofre uma reviravolta; nas imortais palavras de Vito Corleone, lhe é feita uma proposta irrecusável. As consequências dessa escolha são estupidamente graves; mas Derek, tal qual deixa claro o título em português, não tem nada a perder.
Assim, Nada a Perder se torna uma narrativa com contornos de suspense – tanto pelas condições colocadas ao personagem, mas também muito por conta de seu comportamento absolutamente errático e problemático; Derek é um grande amontoado de frustrações, culpa e vícios, e nunca sabemos exatamente como ele vai reagir a determinada situação. É um recurso narrativo brilhante, e uma construção sólida de personagem. Seria muito fácil para Lemire utilizar a desculpa de um comportamento errático para fazer seu personagem se adaptar aleatoriamente às circunstâncias, mas o que vemos é o exato oposto: as consequências das suas ações são resultado, e não causa, dessas circunstâncias. A história progride por conta própria, carregando – ou vitimando – Derek em direção a um inevitável e trágico desfecho.
Valorizando enormemente essa sólida construção narrativa está o traço de Lemire. Conhecido por sequer tentar – ainda bem – qualquer tipo de foto-realismo, o traço do autor adorna com perfeição o tom da história: rasurado, de cores frias e colorização com toques aquarelados, tudo conspira para a criação de um ambiente deprimente e distante; como se Lemire, de alguma forma, estivesse absolvendo seu personagem de ser emocionalmente fragmentado por viver em um lugar assim. A diagramação dos quadros é relativamente convencional, mas o timing é perfeito – com poucos diálogos, a narrativa se desenvolve quase toda em uma progressão precisa e envolvente dos quadrinhos, com inúmeros closes e cenas circunstanciais preenchendo o silêncio com mais significado que uma palavra poderia dar.
É quase lamentável pensar no tempo que Jeff Lemire perde trabalhando para as grandes – embora, de alguma forma, isso seja animador, porque estamos falando de um dos melhores artistas de HQ da atualidade, e que já declarou gostar dos encapuzados. Com alguma sorte, algum herói vai ganhar uma de suas melhores histórias pela mão do autor. Mas isso é o que menos importa.
O que importa é que Lemire continue desfilando todo o seu talento em suas HQ’s autorais, que continuam num nível estupidamente alto. Com o nome dele na capa, nenhum de nós tem nada a perder. Só a ganhar.