Morrison acerta em Mulher Maravilha: Terra Um
Quem aguenta mais reinvenções “modernizadas” de heróis clássicos dos quadrinhos? No caso da DC, isso ainda tem o agravante de criar mais um universo paralelo dentro do já bagunçado multiverso da editora. A série Terra Um já repaginou o Superman, Batman (leia as críticas do primeiro e do segundo volumes), então seria natural que viesse também a outra parte da Trindade. Ainda que novas origens não animem muito, Mulher Maravilha: Terra Um (Wonder Woman: Earth One) é uma boa surpresa, graças à sensibilidade de Grant Morrison.
Mesmo que não esteja entre os grandes trabalhos do escocês, esta revisão da origem da Princesa Amazona consegue entregar algo que não fica restrito ao mais óbvio. A zona de conforto de Morrison seria apenas uma defesa do feminismo, mas ele não se contenta com isso e já monta um cenário propício para argumentos e contra-argumentos dentro da mesma narrativa. Afinal, Diana está sendo julgada pelas suas próprias compatriotas de Themiscyra. Seu crime não é apenas a fuga temporária da ilha, mas também o contato com um homem.
Quem já conhece a personagem sabe como Steve Trevor é parte integrante da mitologia clássica. Aqui, sua chegada involuntária precipita os conflitos latentes que Diana tem com Hipólita, sua mãe super protetora. Entre os pontos fortes da trama, a construção da personalidade da protagonista é simples, mas de fácil identificação com o público geral, independente do sexo.
A etnia do militar foi trocada, mas Morrison é esperto ao usar isso em favor da história, sem que pareça apenas uma exigência mercadológica. As questões do posicionamento feminino dentro de uma sociedade, além do radicalismo das amazonas, encontram um contraponto interessante quando Trevor diz a elas que seu povo também sofreu bastante em determinado momento histórico.
Como já deu para perceber, este primeiro volume de Mulher Maravilha: Terra Um não é algo restrito ao público feminino. Claro que o tópico da liberação está ali em vários sentidos, inclusive em questões abertamente sexuais. Muito antes do lançamento nos EUA, em 2016, Grant Morrison já havia comentado que iria explorar o fetichismo intrínseco deste universo (leia este artigo da época) e ele cumpriu a promessa. Evidente que não é nada explícito, mas vai além da mera sugestão ou de um duplo sentido, pois esta Diana é bastante curiosa sobre tudo, inclusive a anatomia masculina, além da intimidade com suas companheiras.
Não apenas isso, como não existe um vilão ou antagonista físico apenas para justificar cenas de ação, o trabalho é todo em cima das motivações destes personagens, onde o roteiro entrega, em sua resolução, uma discussão entre mãe e filha que revela falhas bastante humanas dentro deste relacionamento. Seria bom que algumas mães lessem a HQ e pensassem a respeito. Não deixa de ser uma opção corajosa, mas pode frustrar quem espera a destruição desenfreada da grande maioria das HQ’s de super-heróis.
Uma única ressalva
O único ponto fraco é a inclusão e participação importante de Beth Candy, nova versão da sidekick da Era de Ouro da Mulher Maravilha, a gordinha Etta Candy. Apesar de simpática, a nova amiga de Diana é tão descolada e articulada, dentro de uma situação que envolve seres mitológicos, que acaba não convencendo. Fora que o texto apela com falas que ficam lembrando o leitor da bissexualidade dela. Nada que comprometa, mas é algo que poderia ser resolvido mais sutilmente.
A arte de Yanick Paquette somente adiciona ao texto de Grant Morrison. Não apenas esforçando-se nos detalhes de Themyscira, o artista está à altura da tarefa de apresentar algo com frescor. Em sintonia com a proposta, temos não apenas figurinos que vão além do retrato da Grécia antiga, evitando a obviedade da semi nudez. São roupas que traduzem uma natureza guerreira, mas sem sacrificar a feminilidade. Além disso, o ambiente tem elementos de ficção científica que trazem um ar de novidade a esta história de origem.
O desenhista também capricha na construção de uma narrativa visual diferenciada. A diagramação brinca com os requadros, que formam um “W” em alguns momentos e simulam o movimento solto de um laço em outros. Aliás, o próprio laço é usado como limite de requadro em determinados trechos, trazendo mais dinamismo em uma história que depende muito mais da interação entre seu elenco do que de ação.
Comparando com Superman e Batman, esta nova versão da Princesa Amazona em Mulher Maravilha: Terra Um é a mais interessante em termos de conceito e execução de roteiro. Realmente, dá vontade de conferir um segundo volume. Que seja com Grant Morrison e Yanick Paquette!