Moby Dick, uma obsessão não só para Ahab
Podes me chamar de Gustavo…
Mesmo que você ainda não tenha lido Moby Dick, livro publicado em 1851 pelo norte-americano Herman Melville, já ouviu esse nome, com certeza.
Presente na cultura popular, seja através das adaptações para cinema, séries, livros infantis e quadrinhos, nas referências em desenhos de Hanna-Barbera e Tom & Jerry – SIM! -, ou até mesmo pelo solo de bateria de John Bonham, Moby Dick é um verdadeiro marco para a literatura estadunidense e uma das obras mais importantes da língua inglesa.
A simplicidade de sua sinopse contrasta com a profundidade e poesia da dinâmica entre seus personagens e sua reflexão acerca do homem da Era Moderna. Tal fascinação gerada pela obra atrai a atenção e desperta, em vários outros artistas, um desejo desesperador de adaptar o romance de Melville. O francês Chistophe Chabouté foi um deles.
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Publicado originalmente em 2014, Moby Dick é a adaptação homônima em quadrinhos para o romance de Melville.
A história segue idêntica a do livro, onde acompanhamos o personagem Ismael, um jovem que anseia por novas experiências e que decide trabalhar em um navio baleeiro. Mas o navio no qual Ismael irá zarpar é o Pequod, cujo capitão é o misterioso e explosivo Ahab, que faz toda a tripulação se unir a ele em uma busca por vingança contra Moby Dick, a baleia branca que lhe arrancou a perna no passado. Com uma obsessão tamanha que anuvia a razão, Ahab conduz todos a uma jornada perigosa e doentia.
Estrutura, ritmo e imersão
Um dos erros mais comuns nas adaptações de Moby Dick é que a maior parte delas contam a história de uma simples caça ao cachalote branco por um capitão ensandecido. Mesmo que, de forma muito simplória, esta seja a sinopse, a obra de Melville ganha vida através de sua potente escrita e ritmo. A jornada e o modo como ela é encarada e sentida pelos personagens e pelo leitor, através das descrições poéticas e até documentais, elevam a qualidade e a sofisticação da narrativa.
Nesse aspecto, Chabouté não comete o erro comum. Ao longo de suas 256 páginas, temos um ritmo lento e tenso, digno das narrativas de viagem em alto mar. O artista faz questão de mostrar cada mínimo detalhe de ações cotidianas dos marinheiros, seja preparando um arpão, ou cortando a carne de baleia. Da mesma forma que Melville se utilizou de muitas palavras para descrever a rotina desses personagens, o artista nos oferece muitos quadros para que possamos imergir nesse novo mundo.
Tal aspecto da narrativa – que lembra muito o neorealismo italiano, tanto em estrutura quanto em enquadramentos – é extremamente importante para a construção da tensão do enredo.
Na primeira metade do século XIX, época em que a história se passa, o espermacete e o óleo de baleia eram muito usados e extremamente valiosos. O único meio de consegui-los era através da baleação (caça às baleias). A partir do momento que um baleeiro zarpava do porto, sua viagem podia durar até três anos. Além do enorme tempo em alto mar, a caça em si era extremamente arriscada e as condições de extração totalmente insalubres. Somente o alto valor de cada barril de óleo de baleia justificava o esforço desses homens.
Justamente por esse motivo é que o estilo lento e descritivo é importante. Afinal, se diante deste grotesco cenário dantiano a tripulação se mantém firme e determinada, aquilo que seria capaz de amedrontá-los ganha uma dimensão muito maior. Até mesmo mítica.
Claustrofobia e intensidade em preto e branco
Normalmente, quando estamos diante de uma história que se passa em um cenário rico em paisagens de horizonte, como faroestes e space operas, entre outras, a cor é um dos elementos mais importantes para compor e contrastar o ambiente. Uma história sobre uma viagem marítima não é diferente. Mas Chabouté não realiza uma narrativa que ocorre em meio a imensidão azul, pois seu mar é negro.
A arte em preto e branco, sem uma tonalidade de cinza sequer, é totalmente funcional dentro do modo como é realizada a narrativa, pois ela fecha a paisagem sobre o desenho e retira-lhe toda a noção de perspectiva, gerando uma sensação de claustrofobia muito acentuada. Tal incômodo visual, pode representar muito bem o modo como o primeiro-imediato, o Sr. Starbuck se sentia. Um homem são que estava a mercê de seu capitão insano e não tinha meios de agir. Sem falar na visão unilateral do próprio capitão Ahab, que, em suas presentes condições, possui uma visão totalmente maniqueísta e unilateral.
Além disso, existem cenas magistralmente construídas, como quando os personagens se mesclam com a paisagem e com o sangue de uma baleia abatida, ou Ahab se apresentando como uma silhueta complexa que se funde ao próprio navio Pequod, dando uma riqueza visual à dinâmica do que está acontecendo. Algo que não poderia ter sido feito com tons de cinza ou cores.
Anteriormente, eu havia comentado que a descrição de Melville tornavam Moby Dick um romance sofisticado e denso. Tal sofisticação aparece de outra forma através da intensidade do desenho de Chabouté.
Ahab: quando Hyde engole Jekyll
Sem dúvida, a figura mais interessante dentro do romance é o capitão Ahab. Sua personalidade fleumática revela seu caráter quebrado. O trauma de perder a perna e da derrota para um animal irracional corroeu todo traço de lucidez que um dia ele tivera.
De maneira muito implícita, vemos que Ahab outrora foi digno de respeito e admiração. Percebemos isso através do primeiro – imediato Starbuck, um homem determinado e inteligente que já navegara com ele, mas que agora está surpreso e apreensivo com a figura que seu antigo ídolo havia se tornado.
O personagem, que está sempre de preto, descuidado e com olheiras tão profundas que parece que não dorme há dias, possui uma profundidade instigante, mesmo não parecendo de início. Na maior parte de suas aparições, o capitão apenas grita “Morte a Moby Dick” ou palavras de ordem. Mas existem determinados momentos em que Ahab declama frases que descrevem perfeitamente sua visão de mundo. Como uma das mais interessantes, em que, em contraste com seu aspecto físico, ele afirma que sua alma é uma centopeia que se move com suas cem pernas.
Ao avançarmos na história, percebemos que Ahab é um prenúncio de outros personagens quebrados que são um aspecto extrapolado de parte de sua própria psique, que, de tão inflada, acaba por se tornar o todo. Dentre eles o principal seria o Sr. Hyde, de O Médico e o Monstro, escrito por Robert Louis Stevenson em 1886, cerca de 35 anos após a publicação de Moby Dick. Mas existem outros ecos ao longo da literatura, como por exemplo o coronel Kurtz de Coração das Trevas, de Joseph Conrad (que já foi adaptado como HQ), e também a figura diabólica do juiz Holden, personagem de Cormac McCarthy em Meridiano de Sangue ou O Rubor Crepuscular no Oeste.
E só para traçar outro paralelo, agora com o cinema, temos a figura de Daniel Plainview, no ótimo Sangue Negro de Paul Thomas Anderson, onde o personagem – vivido magistralmente por Daniel Day-Lewis – entra em decadência moral e ética.
Um ótimo e hercúleo trabalho, mas não livre de erros
Embora Chabouté tenha realizado um incrível trabalho digno da nona arte, ainda assim existem alguns equívocos que diminuem um pouco a obra.
Um deles é no próprio desenho, onde o artista falha na concepção de expressão de personagens importantes como Ismael e Ahab. No caso, Ismael está quase sempre com uma expressão de dúvida e insegurança, independente da situação do momento retratado, o que faz com que a carga dramática visual não tenha força em momentos de dilema ou cenas mais catárticas.
Mas, talvez, o personagem que mais perde nesse aspecto é o capitão Ahab. Retratado a todo o momento com uma feição exagerada, sua profundidade na obra se dá muito mais pela verborragia do que por suas expressões. Essa falta de sensibilidade acaba diminuindo a profundidade de um personagem que é extremamente complexo e fascinante. Se não fosse o texto de Melville nesse quadrinho, e o conhecimento popular da obra original, o Ahab de Chabouté correria o risco de ser apenas um insano vilão unilateral.
Outro ponto que pode incomodar os fãs do romance original é a supressão de determinadas passagens. Mas o incômodo não é a ausência de tais momentos, e sim porque alguns trechos suprimidos davam maior desenvolvimento para os personagens principais como Ismael, Queequeg, Starbuck e Stubb. Esse desenvolvimento é importante na narrativa, pois gera contínuos questionamentos e dilemas a respeito da jornada da tripulação, de forma que o leitor sente que o Pequod é um ambiente totalmente volátil, hostil e insano.
Esses problemas vão incomodar muito mais aqueles que conhecem a obra original, mas aqueles que, por ventura, não leram o livro de Herman Melville, podem sentir ao final da leitura que falta um desenvolvimento um pouco maior nas principais personas que compõe a obra.
Moby Dick é uma obra atemporal, que consegue cativar o leitor de qualquer época, pois não trata de uma caça em alto-mar, mas é sobre um microverso isolado do continente, onde a sanidade é tão rara quanto terra-firme no horizonte. Também trata sobre a corrosão da psique do homem soberbo que não aceita um cosmos maior que a si próprio.
Chabouté realiza uma obra grandiosa estética e conceitualmente. É uma bela homenagem e uma das melhores adaptações de um dos livros mais importantes já concebidos. Fica claro, em cada uma das páginas, que esse trabalho foi sua Moby Dick particular. Era preciso. Somente uma obsessão tamanha, como a do próprio Ahab, para um quadrinista concluir uma obra dessa magnitude e ter um bom resultado. Sorte de nós, leitores e críticos, que a maré, vez ou outra, nos brinda com tais artistas insanos e obcecados.
Ao final da leitura, seja do romance original ou do quadrinho de Chabouté, o leitor, inevitavelmente, vai parar e refletir sobre a parcela de Ahab em sua psique. Todos temos em maior ou menor escala. Assim como todos temos nosso próprio cachalote branco para caçar.