Deprimente e cativante, Mau Caminho acerta no contraste entre conceito e visual
Simon Hanselmann nunca havia sido publicado no Brasil e chega ao nosso mercado com Mau Caminho (Bad Gateway, 2019), graças à disposição da Veneta. Curiosamente, a trajetória da bruxa Megg e seu namorado, o gato Mogg, além de outros tipos disfuncionais ao extremo, não começa neste álbum, que nos coloca na história com o bonde andando. Questionamentos sobre essa decisão editorial à parte, não atrapalha a imersão e há um pequeno resumo no início do álbum. Isso posto, para quem não conhece o autor ou esse material, já é preciso avisar que a HQ vai longe em matéria de sexo e drogas, mas existe um propósito, gostem ou não.
Simplesmente, dentro desta roupagem de conto de fadas, os personagens que circulam neste universo são dependentes e um deles é até traficante. A única preocupação é pagar o aluguel do lugar que dividem e Megg é uma parasita de assistência social. Dentro de certos parâmetros, textualmente, isso coloca o álbum próximo de Réquiem Para um Sonho, de Darren Aronofsky, mas não espere estouros gráficos para indicar viagens alucinógenas, onde entraríamos nestas mentes para vislumbrar algum lirismo.
O autor até investe em uma narrativa bastante careta, com grids de 12 quadros que não se alteram, criando uma relação estranha com os leitores. É como se fôssemos convidados a dar uma olhada de perto nessas vidas desperdiçadas, mas da forma mais crua que a ficção permite. O estranhamento causado por uma bruxa e um gato falante, mais o amigo lobisomem (metáfora óbvia, mas funcional no roteiro), completa o conjunto que estimula a conferir para onde vai essa trama.
Trazendo mais referências do Cinema, se Mau Caminho fosse um filme de visual tradicional, poderia lembrar algum trabalho de Harmony Korine. Se nosso hipotético longa tivesse um pouco mais de bizarrices, talvez fosse comparado a John Waters, mas isso é apenas para dar uma ideia geral e não define o todo. A HQ tem uma voz muito própria, ainda que ela demore um pouco a se mostrar para quem passeia pelas suas páginas. A princípio, algumas pessoas podem sentir a busca constante pelo choque gratuito, o que não é uma impressão injustificável, mas é uma pista falsa.
Seu visual geral e as situações que encontramos logo no início indicam uma comédia, mas isso também engana. Hanselmann não teria como sustentar isso apenas fazendo graça, em uma história cujo único conflito, fora um ou outro atrito de relacionamento, é arrumar dinheiro para o aluguel e para maconha. Mas, se você prestar atenção na última parte da frase anterior, cabe perguntar: não é uma situação absolutamente deprimente? Claro que sim. E é nessa adversidade que a coisa vira e aparece o lado nada engraçado de quem é dependente e vive à margem da sociedade.
Empatia inesperada em um contexto muito específico
Quando Mau Caminho começa a mostrar o lado mais humano de Megg, desfazendo-se de coisas com valor sentimental por trocados, já é possível uma conexão mais próxima com os leitores. Esse trecho, na verdade, é uma preparação para o que vem depois, mais para o fechamento. Aliás, os momentos finais do álbum valem mais considerações sobre essa opção do visual cartunesco e antropomorfizado para personagens tão marginais.
O conjunto serve como argumento sobre o poder de uma boa composição de personagens, em uma jornada dramática lentamente calculada. Em uma olhada rápida, é de se duvidar que seja possível sentir pena de algum deles, justamente pela estilização e conceito do traço. O envolvimento acontece, acabando com a dúvida. Por outro lado, essa “desumanização visual” é que permite, talvez, evitar qualquer tipo de julgamento apressado sobre eles e os torna mais palatáveis. Vez por outra, infelizmente, essas boas sacadas acabam diluídas em algum diálogo ou situação bizarra, mas arranha pouco o geral.
Enfim, o premiado Simon Hansselmann está agora disponível para os leitores brasileiros conhecerem e avaliarem sua obra. Mau Caminho tem um projeto gráfico excelente, valorizando também as ilustrações de página inteira que compõem a edição, mas essa parte gráfica, apesar de muito chamativa, é só a metade do que torna o álbum notável. O texto faz sua parte, em um casamento bastante feliz.