A Panini segue com suas republicações decentes das joias que a Invasão Britânica (já ouviu nosso podcast sobre o assunto?) rendeu ao catálogo da DC, culminando na criação do selo Vertigo, lá pelo final da década de 1980 e começo da seguinte. Kid Eternidade (Kid Eternity) é um desses casos, escrito pela estrela Grant Morrison e publicado originalmente em 1991, como uma minissérie em três partes. A nova edição brasileira tem capa dura e papel couché de boa gramatura, a um preço de capa razoável de R$ 29,90. Com a arte de Duncan Fegredo devidamente valorizada pelo acabamento gráfico, a compra já está mais do que justificada.
Seguindo o mesmo procedimento-fetiche dos escritores britânicos na época, que o próprio Morrison aplicou anteriormente em Homem-Animal, escolhendo um personagem obscuro ou esquecido e reformulando-o, o roteirista escolheu a criação de Otto Binder e Sheldon Moldoff para a Quality Comics. Kid Eternidade surgiu em 1942, na Hit Comics #25, como um garoto sem nome que morreu no barco pesqueiro que seu avô comandava, torpedeado pelos nazistas. Chegando ao Além, a entidade que cuidava da lista de pessoas mortas – Sr. Zelador (Mr. Keeper) – percebeu que havia cometido um erro, pois o menino teve sua morte adiantada em 75 anos. Para compensar o engano, o garoto é enviado de volta à Terra com a missão de fazer o bem durante esse tempo.
Ganhou poderes, é claro. Dizendo a palavra “Eternidade”, ele era capaz de invocar pessoas mortas, ficar invisível e intangível e teleportar-se para qualquer lugar da Terra. O Sr. Zelador o acompanhava e fazia o papel de mentor. O tempo passou, o interesse por esse tipo de personagem esfriou e as propriedades da Quality acabaram vendidas para a DC, que deixou o personagem na geladeira até meados dos anos 1970, quando resolveram colocá-lo em uma das terras paralelas do multiverso da editora. Kid foi parar na Terra-S, lar da Família Marvel (Shazam), onde ganhou sua primeira reformulação, recebendo um nome civil – Christopher “Kit” Freeman – e foi reapresentado como irmão do Capitão Marvel Jr.! Passado mais algum tempo, caiu novamente no esquecimento antes de chegar às mãos de Grant Morrison.
Chegando à nossa minissérie, Jerry Sullivan é um comediante de stand-up que sofre um acidente terrível, horas depois de comparecer a uma festa onde a palavra “Eternidade” surgiu por acaso em um jogo. Eventos estranhos se desenrolam por ali, inclusive o aparecimento mágico de Kid e demônios que matam alguns convidados. Kid precisará da ajuda de Jerry, entre a vida e a morte no hospital, para resgatar o Sr. Zelador do Inferno, de onde ele escapou após trinta anos, graças a um momento de convergência envolvendo a palavra mágica.
Respeitando a fase da Era de Ouro e desconsiderando a relação com a Família Marvel, Kid Eternidade vai pelo mesmo caminho do Monstro do Pântano de Alan Moore. Além de justificar a ausência editorial do personagem com esse exílio de três décadas, o protagonista ainda encara a descoberta sobre sua verdadeira origem, balançando toda mitologia pregressa e inserindo elementos de Caos e Ordem no meio de uma disputa cósmica pelo destino da existência. Essas ideias são bastante interessantes como conceito geral e Morrison faz a festa com elas, divertindo-se com uma escrita fragmentada, onde determinados momentos trazem um texto não-linear, portanto, podem ter sua ordem embaralhada sem prejuízo do entendimento. Infelizmente, isso não significa que o conjunto seja um grande momento do escocês, pois ele cede a um recurso fácil, entre outros detalhes.
Ao sentir-se livre para virar a origem de Kid do avesso, Grant Morrison escorrega naquela fórmula que alguns britânicos adoravam utilizar na época, acreditando que chocar o público careta norte-americano valorizava a história de alguma forma. A inserção oportunista de um abuso sexual infantil, além de fora do contexto, é apenas a busca do choque pelo choque, destoando do resto do texto. Mesmo descontando isso, é fato que história como um todo tem problemas de ritmo, perdendo-se na cadência dos acontecimentos e deixando o leitor um tanto perdido lá pelo meio. Começando com uma quebra de expectativa através do contraste entre um número de stand-up e a emergência em um hospital, a HQ promete bastante em sua largada, mas o roteiro não dá conta desta expectativa.
Entre um pastor fanático e um assassino, cuja presença será explicada depois, o vai-e-vem das situações prejudica o núcleo principal. Kid faz aquele tipo malandro e irônico, mas em momento algum sua jornada parece interessante de verdade, pois sua descoberta não traz impacto emocional ou mais densidade dramática. Jerry também não contribui muito neste sentido, servindo mais como um recurso para explicar ao leitor como as coisas funcionam, já que ele pergunta e Kid responde. O que segura mesmo o leitor, salvando a experiência com louvor, é a arte deslumbrante.
O trabalho do inglês Duncan Fegredo é nada menos que perfeito. Com belas figuras pintadas dando vida às boas sacadas de Morrison, o artista recria o personagem principal como se ele fosse um ser que está na linha limítrofe entre um humano comum e um fantasma. O detalhe clássico mantido, a faixa vermelha na cintura (talvez, fazendo uma relação consciente com a gravata borboleta de Jerry), é mais um exemplo do uso esperto das cores, assim como o azul mais forte quando os poderes são utilizados. A construção dos ambientes do Inferno, assim como as criaturas encontradas pelo caminho, transborda criatividade, fazendo o leitor demorar-se nas páginas e saborear cada detalhe das imagens surreais e da simbologia inserida por Grant Morrison.
A narrativa consegue transmitir o caos presente na história, contribuindo no clima e caprichando no contraste com os momentos mais calmos. Transitando entre o tradicional, nas páginas dos números cômicos, ao mais solto e imprevisível, o artista parece imprimir exatamente o que o texto necessita. Eis um caso de HQ que outro estilo de arte, ou alguém menos competente, poderia ter colocado tudo a perder. Felizmente, Duncan Fegredo salvou o dia. Caso o roteiro estivesse à altura das capacidades dele, teríamos aqui um verdadeiro clássico da nona arte.
Talvez sejam exatamente essas deficiências apontadas que deixaram Kid Eternidade apagado na carreira de Grant Morrison e um tanto esquecido entre os títulos clássicos da Vertigo. Mesmo a continuidade proposta pelo roteirista acabou desconsiderada depois. Independente disso e das ressalvas, com uma arte como essa, dificilmente você não vai querer ter em casa.