Fun Home: Uma Tragicomédia em Família narra a relação agridoce de sua autora com o pai
Famílias sorridentes, exalando otimismo e admiração, todos sabemos, só existem em comerciais de margarina e porta-retratos. Por mais doloroso que seja admitir a realidade dos relacionamentos familiares, sempre haverá um momento em nossas vidas em que seremos obrigados a remexer no baú das memórias. Todas as memórias, especialmente as mais doloridas. A quadrinista americana Alison Bechdel não apenas revirou suas lembranças mais sombrias como fez questão de apresentá-las ao mundo em preto, branco e azul-esverdeado no premiado quadrinho autobiográfico Fun Home: Uma Tragicomédia em Família (Fun Home: A Family Tragicomic).
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(Comentamos sobre as HQ autobiográficas Ao Coração da Tempestade e Uma Metamorfose Iraniana no Formiga na Tela)
Lançado originalmente em 2006, mas só agora nas prateleiras brasileiras pela editora Todavia, a HQ tem o senso de humor típico de sua criadora. Bechdel não faz rodeios para criticar seus familiares e, muito menos, a si mesma em cada uma das 240 páginas de Fun Home. A começar pelo título, uma referência à funerary home, ou seja, casa funerária, que foi o negócio de sua família durante toda a infância e a adolescência da moça. O foco da história é a morte repentina de Bruce, pai de Alison, logo depois dela anunciar, por meio de uma carta, que é lésbica.
Já nas primeiras páginas percebe-se que crescer no lar dos Bechdel não foi uma experiência fácil. Obcecado por decoração, violento com os filhos e leitor voraz de Proust, Bruce não era o que se pode chamar de exemplo de pai. Nem de marido, algo que ela descobre em um telefonema dado pela mãe, contendo histórias de relacionamentos do pai com vários homens, incluindo alguns baby-sitters dos filhos.
Mesma casa, mundos opostos
Enquanto relembra acontecimentos da juventude, a autora também apresenta seus sonhos e dúvidas sobre a figura paterna. Bechdel é uma artista de detalhes e sempre faz questão de deixar pistas nos quadros que cria: Os Muppets e O Homem do Rifle na tela da TV, sua mãe sempre com expressão séria e olhos cansados e os trejeitos singulares do pai. Quase uma sessão de análise compartilhada com os leitores, onde vemos alguém intercalar entre carinho e rancor com a figura que poderia ter sido um porto seguro em sua vida. A opção pela aquarela nos pontos de cor de Fun Home não é apenas uma preferência da artista. O tom azul-esverdeado, quase cinza em alguns pontos, transparece o sabor agridoce das lembranças de Bechdel.
Mas não é apenas pai e filha que habitam Fun Home. Os irmãos da autora e seus primeiros amores são outros parágrafos da sua história. A suspeita de suicídio que paira no ar é o gatilho para que Bechdel se questione sobre o peso dos segredos do pai em sua própria sexualidade. Descobrir que a filha assumiu suas escolhas para o mundo tão jovem não teria ocasionado a morte de Bruce? As agressões físicas e verbais do pai não seriam um disfarce do próprio preconceito?
Muitas perguntas. Pais são um mistério, mesmo que estejam sempre por perto. Numa das passagens mais emocionantes de Fun Home, Bechdel mostra sua família espalhada pela enorme e refinada casa. É o retrato da solidão. A forte ligação com a arte – a mãe era atriz e já vimos que o pai não poupava em livros e quadros – foi a salvação e a ruína daquele lar insólito. Cada um buscou uma saída para não enlouquecer, mas não houve tempo para um reencontro que colocasse todas as dores em pratos limpos. Seria bonito, mas não seria Fun Home. Finais felizes são para os fracos e Bechdel faz questão de não se colocar no lugar de vítima. Ela também aprontou das suas, também foi agressiva, também não permitiu o diálogo. Erros são parte do humano. Seja nos escritos de Proust ou na casa do vizinho.
Fun Home foi escolhido pela revista Time como o melhor livro de 2006, sendo o primeiro quadrinho a receber este prêmio e também levou para casa o Eisner Award. Em 2015, os traços de Bechdel ganharam os palcos da Broadway e cinco Tony Awards, incluindo Melhor Musical. Ah, e sabe o Teste de Bechdel? Aquele que questiona um filme e outras mídias de acordo com a abordagem dada às personagens femininas? Pois então, ele foi batizado por conta de uma tirinha publicada em 1985, chamada Dykes to Watch Out For, onde uma personagem comentava sobre o assunto. Questionar é um dos passatempos preferidos da nossa amiga Alison Bechdel. Duvido o caro leitor não querer um café para dividir as dores e as delícias da vida com ela depois de acabar a leitura de Fun Home.
Afinal, velhos fantasmas sempre voltam. Cabe a cada um de nós torna-los divertidos para conseguir seguir em frente.