Floresta dos Medos se traveste de contos de fadas para expressar medos reais
Freud, e principalmente seu aluno, Jung, investigadores da mente que eram, tinham como um de seus grandes objetos de interesse o medo. No geral, ele pode ser dividido em duas categorias – os que afetam individualmente e os que são compartilhados. Medo quase nunca é algo absolutamente racional, mas nem sempre é sem motivo. Muitos dos nossos medos compartilhados são fruto de longas experiências como espécie – um dos motivos que levaram Jung a fundamentar sua tese do “inconsciente coletivo”. Imagens residuais de tempos idos, são ecos que nos alertam para aquilo que pode nos ameaçar. É nesse trânsito, entre os medos imaginários e os bem-fundamentados, os que são experiência e os que são herança, que encontramos Floresta dos Medos, da canadense Emily Carroll, publicado aqui pela DarkSide.
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A autora demonstra desde a proposta da HQ que entende muito bem a natureza desse estranho sentimento. Não é uma narrativa contínua, mas uma antologia de 5 contos, mais prelúdio e epílogo; cada um explorando uma faceta da natureza do medo. Carroll opta por uma abordagem sutil, ascendente do medo – o estilo narrativo e gráfico é claramente inspirado no horror gótico do século XIX, com toques de contos de fadas. Uma espécie de caldeirão que mistura Perrault, Andersen e Grimm, com pitadas de Poe para escurecer o caldo. Talvez por isso – ou pensando nisso – o nexo causal dos seus contos de horror seja justamente um elemento típico do horror gótico, mas que evoca sentimentos universais: a floresta.
Mas a floresta, aqui, não é uma causa do medo em si – nós temos medo da floresta enquanto símbolo, mas o que a autora faz é nos demonstrar que o horror oriundo desse símbolo é, quase sempre, um espelho do medo que existe dentro de nós, não fora. Em nenhum dos cinco contos, a floresta é um protagonista ativo da trama – ela serve como passagem, como subterfúgio ou como abrigo para a verdadeira natureza do medo. Não é o medo de monstros ou do sobrenatural. É o medo da decepção, da ilusão, da solidão, do desconhecido. O medo do próprio medo – essa característica tão humana, demasiada humana. A imagem coletiva de um ambiente onde podemos nos perder é uma reflexão gráfica mais do que apropriada das maneiras como podemos emergir dela: portando nossos medos individuais.
Assim, a autora foge de fórmulas fáceis – jumpscares e o gore virtualmente inexistem em Floresta dos Medos, e mesmo os elementos de horror mais gráficos são apresentados ou de forma sutil, ou subvertendo o que se espera da trama. No fundo, os medos evocados por Carroll são tão eficientes porque são relacionáveis – quando se transpõe o véu do fantástico e o medo inconsciente do símbolo da floresta escura, percebe-se que coisas como o medo do luto, o medo da violência, ou o medo dos seus próprios sentimentos é o que provoca a angústia da obra. Se Freud e Jung, fundadores da disciplina psicanalítica, podem realmente ser evocados aqui – tal qual nos disse Bruno Bettelheim – então temos uma camada obscura aqui (trocadilho pretendido). Nós não temos medo de ficarmos perdidos na floresta. Em alguma medida, nós somos a floresta.
Mulheres contra o medo
Talvez por isso, a autora tenha como protagonistas de seus contos quase que exclusivamente mulheres – apenas “Seu Rosto Todo Vermelho” possui homens conduzindo o conto. Curiosamente, um conto sobre fratricídio e inveja – em comparação com os outros, é possível sim entender que Carroll está nos dando um ponto de vista, sim. Os outros contos tratam sobre medos bastante próximos do universo feminino – homens batendo na porta na calada da noite, aliciando inocentes; violência domiciliar; angústia de expectativas sociais, etc. Novamente, o medo descrito pela autora ultrapassa o fantástico e se torna real, na medida em que o oculto e o sobrenatural não se compara ao que se enfrenta no cotidiano. Apesar de essas mulheres se demonstrarem quase sempre aptas a enfrentar esses horrendos desafios, isso não basta para sublimar os efeitos latentes do medo resultante; o que também não deixa de ser uma reflexão – aterrorizante – em si.
A cereja desse bolo medonho é um delicioso contraste: enquanto a narrativa se aprofunda em aspectos psicológicos individuais e coletivos complexos, a arte evoca uma certa inocência, uma certa infantilidade proposital, que, no lugar de diluir a angústia narrativa, apenas a exacerba. Muitas vezes rompendo a pasmaceira dos tons pastéis com cores vibrantes para denotar o impacto do medo, Carroll cria imagens abomináveis e envolventes com improváveis traços fluidos: manifestando, como se fosse uma criança incautamente imersa em seus próprios pesadelos, seus medos mais profundos. A escolha por contos curtos, relacionados apenas pelo nexo simbólico da floresta – representada quase sempre como um cenário negro, opressivo e indistinto – potencializa ainda mais esses medos; muito melhor do que poderia se tentasse explicá-los.
Floresta dos Medos é o tipo de obra que precisa ser lida e relida, pois a natureza dos sentimentos que ela evoca não é objetiva, nem instantânea. Está no nosso âmago, e fala com partes antigas e escuras de nós. Que precisam ser observadas de perto para serem compreendidas.
Mas você tem coragem de olhar para dentro da floresta?