Breno Ferreira apresenta um personagem real famoso pela crueldade
A maldade pode ser assustadora, mas também é fascinante quando estamos a uma distância segura. Quando lemos sobre fatos antigos, ou até relativamente recentes, o sangue-frio de algumas pessoas que praticam atrocidades é sempre marcante. Na ficção, personagens assim também carregam um apelo curioso, mas Breno Ferreira, em sua HQ intitulada simplesmente Cão, trouxe um protagonista que realmente existiu. Diogo da Rocha Figueira viveu em fins do século XIX no sertão paulista, agindo como assassino contratado e deixando um legado indizível de maldade.
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Primeiro ponto positivo a se destacar é a escolha do tema. O Brasil é rico em eventos e personagens interessantes que podem render muito se bem explorados, algo que comentamos há pouco na resenha de Imperiais de Gran Abuelo. Diogo Figueira é apenas um deles e carrega aquela aura de mistério dos assassinos frios do passado. Não é interessante apenas por isso, mas a época e o local em questão contribuem para misturar lenda e realidade. Afinal, não haveria como evitar o surgimentos de “causos” em torno de uma pessoa como essa.
Cão foi um projeto aprovado pelo Proac em 2015. A editora Mino, de Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias, lançou o álbum em 2017. A capa cartonada tem um recurso interessante, sobrepondo uma camada de verniz sobre o rosto do personagem. Impossível perceber através da imagem aqui, mas chama bastante atenção quando exposta nos pontos de venda.
Breno Ferreira já vinha publicando seus trabalhos no blog Cabuloso Suco Gástrico. Também faz parte do coletivo de artistas Miolo Frito. Aventurando-se pela primeira vez em uma HQ longa, ele se saiu bem com Cão, aproveitando bem a riqueza do material que tinha em mãos. Não há um arco dramático que se desenvolve do início ao fim, mas uma coleção de pequenos episódios que ilustram o gosto de Diogo pela matança, além de alguns conflitos gerados pelo seu ramo de atividades.
Mantendo-se fiel à prática interiorana dos contadores de “causos”, o compromisso é mais com a lenda do que com os fatos. Um dos elementos mais bacanas desta figura mítica é justamente o “corpo fechado”, protegendo-o dos inimigos e impedindo sua morte. O autor incorpora isso em sua narrativa de uma forma muito interessante, adaptando certos símbolos conhecidos para a realidade do interior de São Paulo.
Violência crua e bem ilustrada
Com um estilo peculiar, os desenhos de Breno Ferreira lembram gravuras, graças à profusão de traços fortes e brutos. Conveniente para o clima da HQ, dando conta não apenas das cenas mais explicitamente escatológicas, como também no retrato do rústico ambiente rural. Contribuindo para a boa experiência dos leitores, a diagramação é bastante clara, conferindo fluidez narrativa para o álbum.
Com uma premissa forte como essa, de apelo intrínseco, mais uma arte que está á altura de traduzir em imagens um mundo onde a moral não tem valor, existe uma ressalva. A estrutura do roteiro de Cão, conforme observado no quarto parágrafo, não se ocupa da construção dramática do assassino frio. Um texto no início do álbum nos dá o contexto histórico do tempo, lugar, a pessoa e a aura fantasiosa em torno dela. Ou seja, a HQ depende de uma introdução preparatória.
Não que esta seja uma exigência por motivações complexas para o protagonista, pois esse é um mistério que também poderia ser usado a favor da história. Cabe a reflexão se a HQ seria tão interessante se a lêssemos sem o conhecimento prévio da existência de Diogo. Com isso em mente, o formato episódico também é um problema, já que não existe, de fato, uma linha a ser seguida pelos leitores, mas um apanhado de situações mais ou menos isoladas.
Ainda que não seja perfeito, Cão tem méritos evidentes, devidamente expostos aqui, e recompensam o investimento do leitor. Fora que Dioguinho é uma daquelas pessoas que não sai da sua cabeça tão fácil…