Fato histórico ganha um tom irônico em A Morte de Stálin
Josef Vissariónovitch foi um dos ditadores mais cruéis da História da humanidade. O codinome escolhido por ele mesmo, depois incorporado ao nome de batismo, diz muito sobre essa personalidade. Stálin, que significa “homem de aço”, governou a União Soviética entre 1924 e 53, criando um clima de paranoia até em seu próprio círculo mais próximo. Afinal, não precisava muito para que qualquer um ali caísse em desgraça, sendo morto ou mandado a um gulag. No álbum francês A Morte de Stálin (La Mort de Staline), vemos os jogos de poder subsequentes ao falecimento repentino do líder.
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Publicada no Brasil em 2015 pela editora Três Estrelas, a HQ tem roteiro de Fabien Nury e desenhos de Thierry Robin. Não é uma tentativa de fazer comédia em cima do evento, embora o caso em si gere situações com um ar de sátira. Nury não buscou uma fidelidade histórica extrema, criando desdobramentos nos corredores escuros do poder com fins absolutamente dramatúrgicos.
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O telefonema recebido pela Rádio do Povo em Moscou, durante o final de fevereiro de 1953, é o evento que inicia a HQ. A ligação, feita pelo próprio Stálin, foi feita para pedir uma gravação da peça que acabara de ser transmitida ao vivo, Concerto Para Piano nº 23, de Mozart. Como a apresentação não havia sido gravada, é necessário executá-la novamente, mas com a consciência que qualquer deslize pode custar a vida de todos ali.
Assim, A Morte de Stálin usa esse prólogo para contextualizar. Fabien Nury sabe que, apesar do comportamento do ditador ser bem conhecido, esse ainda é um trabalho de ficção. Logo, é necessário construir o clima de tensão em torno desta figura que, óbvio, aparece pouco ao longo de cerca de 150 páginas. Sofrendo um AVC logo após receber a gravação, o foco passa para o grupo onde as maquinações se desenrolam.
Lavrenti Béria, Nikita Kruschev, Georgy Malenkov, Nikolai Bulganin, Viatcheslav Molotov são os personagens centrais nesta transição de poder. Os filhos do ditador também tem participações importantes neste roteiro, porém, mais para delinear a personalidade do falecido. Béria é apresentado como o mais sórdido entre eles, não apenas pelas tramoias que prepara para ocupar o vácuo de poder.
Mesmo que você saiba como termina, a história se segura
Quem prestou atenção nas aulas de História, ou se interessa pelo assunto, já sabe o que acontece, pois a ideia não é criar uma realidade alternativa. Mesmo assim, temos aqui um roteiro cujas idas e vindas acontecem em um ritmo bastante agradável, além de contar com personagens convincentes. Apesar de Béria servir aqui como uma espécie de vilão, o roteirista consegue evitar que a situação descambe para uma caricatura maniqueísta pura e simples.
Ainda que a natureza deste contexto seja por demais específica e relativa, Nury não relativiza ou atenua as ações de seus personagens. Exatamente por isso, não evita incluir o massacre da massa de civis que peregrinou até Moscou para o funeral do líder. Caminhando nesta linha tênue entre a tragédia e a ironia, A Morte de Stálin mostra o domínio e sensibilidade do roteirista no desenvolvimento da história que desejava contar.
Os contornos expressionistas de uma história peculiar
A arte de Thierry Robin é perfeita para este trabalho. Um realismo maior na representação destas figuras sacrificaria muito do apelo do roteiro, correndo o risco de cair em um didatismo inútil. A estilização dos personagens, assim como o gestual de cada um deles, confere agilidade e até uma certa leveza a um assunto difícil. Como apenas isso não seria suficiente, o jogo de luz e sombras marcadas cria uma atmosfera expressionista perfeitamente adequada para sentirmos a desconfiança e ambiguidade no ar. O equilíbrio com a colorização sutil é notável.
Sobre a diagramação das páginas, outro acerto. Evidente que trata-se de uma narrativa que depende bastante de diálogos, inevitavelmente utilizando a dinâmica de plano e contraplano que vemos bastante no cinema. No que poderia ser o calcanhar de Aquiles do artista, entregando sequencias repetitivas, Robin se sai muito bem, variando bastante suas composições e mostrando destreza e segurança nos ângulos e enquadramentos escolhidos. Além de diferenciar algumas cenas através de requadros mais trabalhados.
Dizer que é um trabalho cinematográfico é cair no clichê? Talvez, mas é importante comentar que A Morte de Stálin já foi adaptado ao cinema (que tal conferir a crítica do filme?), contando com um elenco respeitável. Sobre o resultado, é melhor que isso não seja comentado neste texto. Fiquemos apenas nos méritos da HQ.
Um exercício bem sucedido de roteiro e arte
A criação de Fabien Nury e Thierry Robin, no mínimo, prova uma coisa. Em mãos competentes, qualquer assunto, real ou não, pode render uma boa obra de ficção. Trabalhando com esse escopo, Nury estava limitado pela própria História, sem a possibilidade de criar grandes viradas dramáticas. Simultaneamente, esse é o grande mérito do roteirista, conseguindo algo acima da média sem a liberdade completa, e o ponto fraco da HQ.
O talento de Robin é fundamental no conjunto. A edição nacional traz alguns desenhos, entre outros, de uma biografia de Stálin que ele acabou abandonando ao se dar conta da complexidade do projeto. No fim das contas, a experiência ajudou bastante nesta parceria. Mesmo não sendo nada particularmente inesquecível no mundo da Nona Arte, traz a satisfação pela percepção do esforço e entrega da dupla.
Também ganha pontos por ser mais um testemunho do potencial das HQ’s. Isso faz diferença, não?